A guerra das delícias

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IstoÉ
Jornalista: Vicente Vilardaga e Guiherme Henrique


24/01/20 - A alimentação industrial que se impôs nas últimas décadas trouxe alguns malefícios incontornáveis para a população, como a obesidade e o aumento das doenças cardiovasculares. Um dos ingredientes fundamentais dessa nova equação alimentar é a gordura hidrogenada ou trans, que consiste em óleo vegetal convertido em gordura sólida, usada para intensificar o sabor e aumentar o prazo de validade dos alimentos.

Seu uso indiscriminado tem causado um aumento do colesterol na população brasileira e mundial e levado milhões de pessoas à morte por infarto e por acidentes vasculares cerebrais (AVC). Para tentar conter esse problema, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou, no mês passado, uma resolução que determina uma redução gradual da gordura trans nos alimentos industrializados no Brasil até julho de 2021 e a eliminação completa até 2023. “A gordura trans já deveria estar proibida há muito tempo por ser altamente nociva”, afirma Celso Cukier, nutrólogo do hospital Albert Einstein. “E enquanto ela não sai de cena, deveria haver alertas em todos os alimentos contra seu consumo”.

Risco de morte

O Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que 5 bilhões de pessoas no planeta estejam correndo o risco de contrair doenças cardiovasculares e ter um infarto ou um acidente vascular cerebral (AVC) por causa do consumo excessivo de gorduras trans. No Brasil, segundo as últimas pesquisas da Sociedade Brasileira de Cardiologia, quatro em cada dez adultos sofrem comprovadamente com o nível de colesterol elevado, o equivalente a cerca de 18,4 milhões de pessoas, que correm o risco de ter algum problema agudo. Esses números, porém, podem ser maiores e alcançar os 60 milhões, já que há uma subnotificação de casos: 67% da população não conhece seus níveis de colesterol e a maioria das pessoas só faz exames a partir dos 45 anos. “O colesterol alto virou também um problema infantil, que vem acompanhado do aumento da obesidade”, diz Cukier. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o consumo de gordura trans acima de 1% do valor energético total que uma pessoa ingere diariamente aumenta de forma significativa o risco de desenvolvimento e morte por doenças cardiovasculares.

A implementação da decisão da Anvisa de banir as gorduras trans é urgente. A alimentação do brasileiro vem mudando radicalmente nos últimos anos e as comidas que mais contribuem para o aumento do colesterol têm sido cada vez mais consumidas, como salgadinho de pacote, manteiga vegetal e margarina em barra, fast food, pipoca de micro-ondas, batata frita, sorvetes, bolacha recheada e biscoitos em geral. Se antes o comum era ter a família sentada à mesa, compartilhando a refeição, o cenário agora é outro. O que era tratado como exceção tornou-se regra para grande parte dos lares, especialmente entre os mais jovens. No fim do ano passado, a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), promovida pelo Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE), mostrou que famílias brasileiras têm comido mais fora de casa e usado alimentos prontos para compor suas refeições. O levantamento mostra que, até 2003, a compra de cereais, leguminosas e oleaginosas representava quase 10,4% do dispêndio financeiro das famílias. Entre 2018 e 2019, esse percentual caiu pela metade: 5%. “Hoje a moda é pedir alimento pelo telefone. Isso faz com que a pessoa receba a comida pronta, sem trabalho algum, sem saber como ela foi preparada ou quais ingredientes foram utilizados”, comenta Anita Sachs, professora doutora do Departamento de Medicina Preventiva da Escola de Medicina Paulista (EMP).

Menos arroz e feijão

Isso significa que produtos como arroz e o feijão, característicos na rotina do brasileiro, têm perdido cada vez mais espaço para a comida ultraprocessada. As mudanças no padrão alimentar estão sendo impulsionadas não só pelo consumo e desenvolvimento de novos produtos, mas também pelo fácil acesso proporcionado pelas novas tecnologias. É raro encontrar alguém que não possua um aplicativo de fast food no smartphone. Um clique e voilá, pratos do mundo inteiro à disposição, com grande prevalência para pizzas e sanduíches. “O brasileiro está perdendo a capacidade de, por exemplo, andar até o supermercado e escolher os ingredientes. Não lava nada, não procura nada. Sequer ficam em pé para preparar alguma coisa. É tudo automático, e isso é um problema”, comenta Anita. “Com o progresso, o ser humano adquiriu hábitos bons e ruins. Um deles foi trazer ao cotidiano uma grande quantidade de alimentos ricos em colesterol”, analisa o cardiologista Sérgio Timerman, da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). Considerado um dos vilões resultantes do processo de mudança no que comemos e do que deixamos de ingerir, o colesterol é motivo de preocupação em boa parte dos profissionais ligados à cardiologia, endocrinologia e nutrição.

O colesterol, em si, não faz mal ao corpo humano. A gordura, inclusive, é naturalmente produzida pelo organismo. “Ele é a matéria prima para uma série de hormônios, chamados de hormônios esteróides, como o cortisol, a testosterona, o estrogênio, entre outros. Todos eles utilizam o colesterol como matéria-prima”, explica o endocrinologista e pesquisador Freddy Goldberg. De maneira geral, existem dois tipos de colesterol presentes no sangue. “O colesterol bom, de alta densidade, chamado HDL, e o colesterol ruim, de baixa densidade, conhecido por LDL”, explica Timerman. A atuação dos dois compostos acontece da seguinte maneira: o colesterol bom (HDL) recolhe o colesterol ruim (LDL) acumulado nos vasos sanguíneos. O acúmulo de LDL pode provocar o entupimento das artérias, causando a aterosclerose. “É a mais pura verdade quando dizem que o que a gente come impulsiona ou diminui a produção de colesterol. O corpo tem uma formação própria desse lipídio, e tudo que nós ingerimos pode aumentar o colesterol”, complementa. A ingestão de alimentos com grande quantidade de colesterol sobrecarrega o organismo, diz Freddy Goldberg. “Cada célula produz o que precisa. Se você não comer colesterol nenhum, não vai faltar no corpo. As células endócrinas fazem isso. Então, a idéia de que a gente precisa comer colesterol está completamente errada. Digamos que você precise de 500 miligramas de colesterol para o seu corpo realizar todas as tarefas necessárias. Se você comer 1 grama, há absorção de 500mg, e o restante será jogado fora. Agora, se você comer 2g, 3g, o corpo vai absorver mais do que precisa, causando problemas no sangue”, completa o endocrinologista.

Há três anos, a SBC emitiu uma nova diretriz que alterou os valores de referência para colesterol e triglicérides. Pacientes com risco cardíaco alto devem ter índice abaixo de 50 mg. Antes, o ideal era 70 mg. “Esses números são fundamentais na prevenção de doenças relacionadas ao colesterol. Esse valor (50 miligramas) está destinado a pessoas que também são obesas ou apresentam antecedente familiar, mas não necessariamente com histórico de AVC ou infarto do miocárdio. Para quem já teve alguma dessas doenças, o controle precisa ser ainda mais rígido”, aponta Timerman. Para pessoas que não apresentam nenhuma dessas enfermidades, o índice de colesterol LDL pode ser de até 130 mg. Por se tratar de um distúrbio sistêmico, os males do colesterol podem aparecer em outros órgãos, como os rins e intestino.

Comida saudável

Questões genéticas também podem influenciar a produção de colesterol no corpo humano. “Se você não exagera na alimentação, tem uma dieta balanceada, e mesmo assim possui colesterol alto, é porque existe alguma disfunção metabólica”, comenta Freddy Goldberg. Segundo o endocrinologista, o problema está no sistema que regula a fabricação do colesterol, versus o que entra no intestino. Neste caso, o problema é tratado com medicação, como as estatinas, os seqüestradores ácidos biliares e a ezetimiba. O melhor caminho para evitar a elevação do colesterol ruim é incorporar na rotina alimentos que sejam mais saudáveis. Hoje em dia, é quase impossível fazer refeições que sejam totalmente livres de gordura trans. “O que os nutricionistas recomendam são pequenas quantidades, até uma ou duas vezes por semana, de produtos ultraprocessados. São os biscoitos recheados, e pães industrializados. Mesmo esses salgadinhos que são vendidos como ”assados” também são um problema”, analisa Anita Sachs. Segundo dados da OMS, comer gordura trans aumenta em 21% o risco de doenças cardíacas.

Em 2012, a Anvisa publicou uma norma que exigia de produtores a especificação no rótulo dos alimentos sobre a quantidade de gordura trans. A medida explica que alimentos com até 0,2g do ingrediente podem se considerar “0g de gordura trans”. Mas isso abriu um precedente perigoso. “Há uma quantidade, mesmo quando dizem que é isento de gordura trans, já que, por lei, ela não precisa ser mencionada. As pessoas escolhem esses produtos, e há uma somatória que pode contribuir para grande ingestão da gordura trans e, consequentemente, para a elevação do colesterol. Ela come pão, batata frita, lasanha, achando que é 0%, mas não é”, esclarece Anita. Manter uma dieta balanceada, portanto, é princípio básico. Relacionar a taxa do colesterol a outras doenças também é importante. “Existem pessoas com o colesterol elevado, mas de baixo peso. Ou uma pessoa com colesterol elevado e que também é obesa, diabética”, comenta Anita Sachs. De maneira geral, uma alimentação rica em fibras, folhas verdes de cor intensa e cruas podem ajudar a controlar e diminuir a presença do composto no organismo. “As pessoas dizem comer salada crua todo dia. Ao investigar, descubro que é só alface e tomate e quase não há fibra. Além disso, é preciso consumir frutas cruas, não na forma de suco, de três a cinco porções por dia. Mas cuidado: 1 manga não é uma porção, ela representa 3 porções”, brinca a nutricionista.

Risco para as crianças

Segundo o Ministério da Saúde, em pesquisa divulgada em novembro do ano passado, três de cada 10 crianças de 5 a 9 anos atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) estão acima do peso, um total de 4,4 milhões. Do total de crianças, 16% (2,4 milhões) estão com sobrepeso, 8% (1,2 milhão) com obesidade e 5% (755 mil) com obesidade grave. Abaixo de 5 anos, são 15,9% com excesso de peso. Esses números mostram que problemas com alimentação não afetam apenas adultos, mas o círculo familiar de maneira geral. “As crianças estão ficando cada vez mais na frente da televisão, do videogame, e estão deixando de praticar atividade física. Além disso, estão se alimentando de maneira inapropriada”, assinala Timerman. Para Anita Sachs, duas frentes devem se tornar prioridade nas famílias: diminuir a compra de industrializados e tornar a dieta saudável algo que envolva toda a família. “Meu conselho é não comprar ou não deixar à vista esse tipo de produto. Quer tomar um sorvete? Congela um iogurte. Não precisa proibir completamente, mas moderar, e procurar ter hábitos mais saudáveis. Mas isso não pode ser só para a criança: todos devem compartilhar esses hábitos. Levar criança à feira, deixar ela participar do processo de escolha e feitura das refeições, são alguns exemplos. Isso pode mudar o futuro de todos.”

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