Folha de S.Paulo
Jornalistas: Katie Thomas e Denise Grady, do The New York Times


28/05/20 –Quando a empresa de biotecnologia Moderna anunciou na manhã de segunda-feira (18) os resultados positivos de um pequeno teste preliminar de sua vacina contra o coronavírus, o diretor médico da companhia descreveu a notícia como "um dia triunfal para nós".

O preço da ação da Moderna saltou cerca de 30%. Seu anúncio ajudou a levantar o mercado e foi amplamente relatado por organizações noticiosas.

Nove horas após seu comunicado de imprensa inicial —e depois que os mercados fecharam—, a empresa anunciou uma oferta de ações com o objetivo de levantar mais de US$ 1 bilhão para ajudar no desenvolvimento da vacina. Essa oferta não tinha sido mencionada nas informações da Moderna aos investidores e jornalistas naquela manhã, e o presidente da companhia disse mais tarde que só foi decidida naquela tarde.

Na terça (19), uma reação estava se formando. A companhia não tinha divulgado mais dados, por isso os cientistas não podiam avaliar sua afirmação. O órgão do governo que conduziu o teste, o Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, não fez comentários sobre os resultados. E a venda de ações provocou preocupações sobre se a companhia tinha tentado aumentar o valor de sua oferta de papéis com a notícia.

O episódio da Moderna é um estudo de caso em como a pandemia de coronavírus e a busca desesperada por tratamentos e vacinas estão abalando os mercados financeiros e o modo como pesquisadores, reguladores, empresas farmacêuticas, investidores em biotecnologia e jornalistas trabalham.

As farmacêuticas habituadas a divulgar informações precoces para atrair investidores e satisfazer os reguladores de repente são acusadas de revelar demais, ou não o suficiente, por um novo e amplo público.

Jornalistas podem ser repreendidos por enfatizar descobertas, enquanto os que ignoram dados imprecisos podem ser acusados de perder a notícia.

Os cientistas que levam o tempo tradicional para coletar e analisar seus dados para publicação em revistas da corrente dominante são criticados por reter informações que poderiam salvar vidas. Sites superam as publicações e quebram as regras habituais ao publicar estudos não aprovados, alguns de qualidade duvidosa. E o presidente dos EUA, Donald Trump, usa seu púlpito prepotente para promover tratamentos não comprovados.

"É um ambiente louco e especulativo, porque a pandemia fez as pessoas quererem acreditar que haverá uma cura milagrosa em um espaço de tempo milagroso", diz David Maris, diretor-gerente da Phalanx Investment Partners e analista que cobriu a indústria farmacêutica.

O presidente da Moderna, Noubar Afeyan, defendeu a decisão de abrir a venda de ações horas depois de divulgar dados limitados. Ele disse que o conselho da companhia estava considerando uma oferta antes do anúncio de segunda, mas finalizou a decisão só mais tarde nesse dia.

"Ela se baseou em analisarmos os dados e concluirmos que precisávamos ter recursos próprios para desenvolver essa vacina, e não simplesmente esperar por verbas do governo", disse ele. A Moderna tem um acordo para receber até US$ 483 milhões do governo americano para desenvolver uma vacina.

Enquanto corporações e cientistas sofrem incrível pressão para desenvolver a vacina e levantam dinheiro para pesquisa e fabricação, as empresas de vacinas também estão disputando a atenção de investidores em um campo lotado e tentam aumentar o preço de suas ações em uma recessão global.

Quase todas tentam comprimir o cronograma para desenvolver vacinas que normalmente levam anos, às vezes décadas, em cerca de um ano —e ainda garantir que sejam seguras e eficazes.

Ao mesmo tempo, uma torrente de informação jorra de publicações médicas assim como comunicados de empresas e universidades. Artigos são postados em chamados sites de pré-impressão (pré-print) de estudos que não foram revisados por especialistas, diferentemente dos artigos nas revistas especializadas da corrente dominante. O site Clinicaltrials.gov, que lista estudos médicos, mostrou que 1.673 estavam em preparação sobre a Covid-19, doença causada pelo coronavírus, em 23 de maio.

Os canais de notícias estão correndo para se inteirar de novas descobertas e alimentar um público faminto por qualquer avanço em tratamentos potenciais ou candidatas a vacinas promissoras contra o vírus altamente infeccioso. Algumas organizações de notícias prefeririam manter a prática tradicional e ignorar resultados precoces de estudos médicos, esperando pelos dados revistos por pares, mas também estão competindo para noticiar os últimos estudos.

Ainda assim, surgem preocupações habitualmente sobre a qualidade de dados publicados rapidamente e os motivos por trás dos anúncios.

"Por que uma companhia divulga dados antecipados?", perguntou Maris. "Claramente há um apetite para isso. As pessoas querem saber que estamos progredindo. Ter uma vacina é a maneira mais clara de termos uma reabertura total e deixar isso para trás."

Os resultados preliminares da Moderna eram promissores. Sua vacina, a primeira a ser testada em seres humanos, parecia segura e estimulou a produção de anticorpos nos primeiros 45 participantes do estudo. E dos oito que continuaram em teste até agora todos produziram os chamados anticorpos neutralizadores, que podem impedir o vírus de invadir células e devem evitar a doença.

Divulgar dados esparsos não é incomum no mundo da biotecnologia, onde as empresas muitas vezes apresentam resultados de testes meses antes de serem publicados em revistas. As empresas de capital aberto devem revelar informação material que possa levar um investidor a comprar ou vender ações. A companhia disse que pesquisadores federais que conduzem o teste seriam responsáveis por submeter os dados a ser revisados e publicados.

Maris disse que ele deixaria para os reguladores decidirem se a companhia agiu de modo inadequado ao não anunciar a venda de ações mais cedo, e que os investidores devem ter sido informados com antecedência de que a companhia pensava em oferecer ações. "Há algo errado nisso", disse ele.

A Moderna, sediada em Cambridge, Massachusetts, abriu seu capital em 2018 e tem sido uma das preferidas dos investidores em biotecnologia, por seu enfoque na área quente de imuno-oncologia e suas parcerias com empresas como Merck e AstraZeneca, e com o Centro de Pesquisa de Vacinas do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas.

Sua tecnologia, baseada em material genético chamado RNA ou mRNA, é considerada altamente promissora.

"O RNA mensageiro é uma das novas plataformas quentes", disse o doutor Anthony Fauci, diretor do Instituto de Doenças Infecciosas, em uma entrevista na quinta (21), acrescentando que ela pode ser rapidamente adaptada para produzir nova vacinas e escalonada.

Embora a Moderna tenha outras vacinas em pesquisa, nenhuma chegou ao mercado, e a viabilidade de sua plataforma de produção de vacinas de mRNA —a base da empresa— está vacilante. É uma precursora na corrida pela vacina do coronavírus, e sua ação aumentou mais de 250% desde o início do ano. Ela fechou a US$ 69 por ação na sexta (22), 26% abaixo do pico de segunda (18), em US$ 87.

O presidente da Moderna admitiu que as empresas hoje estão submetidas a um escrutínio muito mais intenso, já que tanto depende do resultado do desenvolvimento de drogas.

"As pessoas estão negociando sem conhecer os dados. Por isso é uma situação difícil para se fazer ciência, e não temos alternativa porque estamos tentando desenvolver uma vacina."

Com tantos interesses diferentes exigindo as últimas informações —incluindo governos do mundo todo—, a companhia não pôde escondê-las do público, disse ele. "Como empresa de capital aberto, se tivermos, não podemos dar isso a eles e esconder de outras pessoas."

Fauci disse que as companhias frequentemente divulgam dados parciais, mas "minha preferência pessoal, e o que meu grupo fará, será esperar até termos os dados sólidos e então publicá-los numa revista, dizendo: 'Na primeira fase foi isto que vimos'."

Mas ele considera animadores os resultados preliminares da Moderna. Os níveis de anticorpos neutralizadores nas oito pessoas testadas para eles pareceu alto o suficiente para serem protetores, disse Fauci. Mas ele enfatizou que oito é um número pequeno.

"Preciso salientar que ainda é limitado", disse. E esse é o motivo pelo qual eu contive meu entusiasmo, mas ainda tenho um otimismo cauteloso."

A Moderna não é a única empresa que deixou de publicar dados científicos detalhados. Pouco se sabe sobre outro produto observado com atenção, o remdesivir, um tratamento experimental para a Covid-19 desenvolvido pelo laboratório Gilead.

Em 29 de abril, a Gilead anunciou que estava "ciente de dados positivos" sobre o desempenho do remdesivir em um teste federal. Algumas horas depois, do Salão Oval, Fauci disse que a droga podia acelerar modestamente a recuperação de pacientes. Embora ele tenha dito que não era um "nocaute", Fauci —a agência dele também fez esse teste—, afirmou que a droga poderá se tornar o tratamento padrão.

Alguns dias depois, a administração de alimentos e drogas (FDA) concedeu autorização de emergência para usar remdesivir no tratamento da Covid-19.

Semanas se passaram sem a publicação de dados detalhados sobre o teste clínico, apesar de médicos estarem administrando a droga com pouca informação para orientá-los.

"Foi uma declaração altamente conflituosa de um cientista altamente respeitado, merecidamente", disse Gary Schwitzer, editor da HealthNewsReview.Org, publicação que defende um jornalismo científico mais preciso. "Isso nos leva novamente a: em que acreditamos? Em quem acreditamos?"

Fauci disse que ele e sua equipe de pesquisa decidiram relatar alguns resultados quando o estudo foi interrompido depois que uma comissão de segurança independente descobriu que os pacientes tratados estavam se recuperando mais depressa do que os que receberam placebo. Por motivos éticos, todos os pacientes tinham de receber a droga.

A informação provavelmente teria vazado —especialmente pelo fato de que duas semanas antes informação de outro teste de remdesivir havia sido revelado ao site de notícias STAT, fazendo a ação da Gilead subir.

Fauci anunciou que os pacientes tratados com remdesivir se recuperaram em 11 dias, em comparação com 15 dias dos que receberam placebos."Eram todos os dados que tínhamos", disse ele.

Os resultados completos foram publicados na sexta (22) no New England Journal of Medicine.

O ritmo rápido da pesquisa deixou muitas organizações de notícias desprevenidas, provocando discussões caso a caso com prazos apertados para decidir se —e como— cobrir notícias científicas mesmo quando a qualidade dos estudos normalmente não preencheriam seus critérios.

Os artigos científicos normalmente levam meses para passar pela revisão dos pares. Mas agora muitos trabalhos estão sendo publicados em servidores pré-impressão, onde os cientistas postam pesquisas antes que sejam aceitas por uma revista.

O site medRxiv, que foi fundado em junho passado, teve 10 milhões de visitas em abril e postou quase 3.100 trabalhos relacionados à Covid-19 desde janeiro. Um site semelhante, bioRxiv, postou cerca de 760 estudos sobre o vírus.

"As pessoas reconheceram que havia uma necessidade urgente de difundir informação", disse Harlan Krumholz, cardiologista e pesquisador de saúde na Universidade Yale, e um cofundador do medRxiv (pronuncia-se "med archive"). "As pessoas reconheceram que as semanas são importantes neste momento, quando não sabemos muita coisa."

Questionado sobre críticas de que sites como o medRxiv incentivam a publicação apressada de ciência ruim, Krumholz disse que artigos analisados por cientistas publicados em revistas também podem ter defeitos. As inscrições passam por uma análise básica para garantir que a pesquisa é legítima. "Vamos avaliar as consequências disso."

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