O Globo 
Jornalista: Ana Lucia Azevedo

A falta de vacinas suficientes contra a pandemia de Covid-19 pode levar a medidas que especialistas classificam como apostas potencialmente perigosas e ainda sem sólida base científica. Causa polêmica a possibilidade já discutida em alguns países, inclusive no Brasil, de se ampliar o intervalo entre as doses de vacinas, de se aplicar uma só dose ou duas meias doses.

O Reino Unido, às voltas com a disseminação de uma nova linhagem do coronavírus, em tese mais contagiosa, foi um passo além. Autoridades britânicas consideram a possibilidade de permitir que uma mesma pessoa tome doses de imunizantes diferentes, caso o usado na primeira dose não esteja disponível.

Mas nada disso foi investigado nos testes clínicos que levaram à aprovação em tempo recorde das vacinas contra a pandemia já disponíveis no mundo, alertam cientistas. “O Reino Unido pode se tornar um imenso laboratório de um perigoso experimento em massa”, advertiu o site médico americano Stat.

No Brasil, segundo fontes ouvidas pelo GLOBO, discute-se a possibilidade de adiar a aplicação da segunda dose da CoronaVac, imunizante desenvolvido pela farmacêutica chinesa Sinovac e o Instituto Butantan, ligado ao governo do estado de São Paulo. A estratégia, de acordo com especialistas, serviria justamente para aumentar o número de pessoas vacinadas na primeira fase e ganhar tempo frente ao controle da pandemia.

Procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde informou por e-mail que "o plano nacional de operacionalização da vacinação contra a Covid-19 prevê que os cidadãos recebam doses do mesmo imunizante e este acompanhamento será feito por meio do aplicativo Conecte-SUS" E que "é importante ressaltar que, conforme já divulgado, o plano é dinâmico e será adaptado — se necessário — à medida em que tivermos vacinas aprovadas e incorporadas ao SUS, de forma a atender a população brasileira com eficiência, segurança e celeridade. A imunização levará em conta as especificidades técnicas de cada vacina, sempre de acordo com as bulas e respeitando as recomendações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)".

A microbiologista Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC) e colunista do GLOBO não se diz surpresa com a discussão destas 'adaptações' no Brasil, mas alerta que, no caso da CoronaVac, não há como opinar se é possível ou não fazer o espaçamento pois não se tem ainda os dados da eficácia da vacina ainda (depois de dois adiamentos, o Butantan deve anunciá-los nesta quinta-feira, dia 7)

— A CoronaVac tem um espaçamento curto, de 15 dias. As outras vacinas tiveram um espaçamento mais longo, o que permitiu uma observação (da resposta imunológica), ainda que parcial na Pfizer e na Moderna, entre uma dose e outra, que sugere que a primeira já seria protetora. No caso da CoronaVac, sem os dados e com a janela menor provavelmernte não daria tempo para avaliar se a primeira dose já deu alguma proteção — diz.

O imunologista Orlando Ferreira, um dos coordenadores do Laboratório de Virologia Molecular (LVM) da UFRJ, diz que falta não apenas vacina para todos, mas planejamento estratégico. Frente à enorme demanda e à escassez de vacinas, Ferreira considera inevitável, no entanto, que medidas assim sejam tomadas. Ele lembra que os dados disponíveis são poucos e se referem à chamada dosagem cheia.

— Decidir mudar a estratégia é uma aposta arriscada. Vacinação é um processo muito complexo, todos esses imunizantes são novos, não se pode arriscar. Porém, com a corrida desenfreada por vacinas, poderemos ver medidas movidas por desespero ou mera política — afirma ele.

Ferreira observa que não se sabe realmente quanto tempo dura a proteção oferecida pelas vacinas. Na verdade, não se conhece sequer a duração da imunidade adquirida com a infecção natural. Ele diz que há alguns dados que sugerem ser possível postergar a segunda dose ou dar apenas uma, mas tudo ainda é muito preliminar.

— Essas vacinas são resultado de um esforço fantástico, trazem novas tecnologias. A vacinação, quando em massa, vai combater a pandemia, mas é preciso fazer tudo com cautela — frisa.

O virologista Paul Bieniasz, da Universidade Rockefeller, nos EUA, levantou ainda uma outra possibilidade. Ele alerta que dar a milhões de pessoas proteção incompleta, além de não protegê-las, poderia levar ao aparecimento de linhagens do coronavírus resistente às vacinas.

Pasternak diz que de fato tudo o que não foi testado em um ensaio clínico é uma aposta, sem dados concretos para embasamento científico.

— Todas as vacinas apresentadas contra a Covid-19, com exceção da Janssen, foram projetadas com um regime de duas doses com um espaçamento entre elas para garantir a maior resposta imune possível nesse intervalo. Muitas vezes sabemos que não faz diferença espaçar. O que não pode é diminuir, porque precisamos de uma janela mínima entre a primeira dose e a segunda para que o reforço faça efeito — diz Pasternak.

Ela pondera, no entanto, que apostas são necessárias em emergências:

— Não há como não fazê-las. Tínhamos planos, mas talvez eles tenham que ser alterados no meio do caminho, é inevitável. A ciência embasa nossas condutas, mas o gestor precisa agir e fazer intervenções e muitas vezes terá que fazer apostas levando em conta probabilidades, e não certezas. É uma decisão difícil, com o número de casos subindo e uma variante do vírus potencialmente mais infecciosa se tornando prevalente.

Febre amarela

A falta de vacinas suficientes já levou anteriormente a mudanças na dosagem contra outras doenças. É o caso da alteração do imunizante contra a febre amarela. Eram recomendadas duas doses, mas, em 2017, com a falta de vacinas para fazer frente à epidemia de febre amarela silvestre no país, o governo brasileiro determinou a aplicação de uma dose. Depois, reduziu para meia dose, que seria repetida em um intervalo menor.

No entanto, a vacina da febre amarela, desenvolvida na década de 1930 do século passado, é uma velha conhecida da ciência. Ferreira lembra que a decisão suscita discussão até hoje. E que as vacinas contra a pandemia do coronavírus são, em sua maioria, desenvolvidas a partir de novas tecnologias. Mais: elas combatem um novo vírus e uma nova doença.

Diferentemente do imunizante contra a febre amarela, testado por muitos anos e reavaliado, todas as vacinas contra a Covid-19 foram desenvolvidas em menos de um ano, testadas em um período de seis meses e aprovadas em poucas semanas. Prazos extraordinários para fazer frente à urgência da pandemia.

Outra possibilidade, a combinação de doses de imunizantes diferentes é vista com mais ressalvas ainda. Ferreira diz que poderia ser ainda plausível, em caso de extrema necessidade, cogitar o emprego de doses de fabricantes diferentes, mas apenas com a mesma tecnologia.

Caso, por exemplo, das vacinas da AstraZeneca/Oxford, Jansen e Gamaleya, todas com adenovírus como transportador da proteína S do Sars-CoV-2. Ou ainda das vacinas da Pfizer/BioNTech e da Moderna, ambas de mRNA.

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