As lições da Ásia para conter a epidemia

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Valor Econômico

23/03/20 - Experiência de epidemias anteriores, que gerou todo um novo modelo de combate a doenças infecciosas, e o comportamento da população foram fundamentais para que alguns países asiáticos conseguissem conter a propagação do coronavírus

Quando Su Ih-jen olha para as estatísticas mais recentes sobre o coronavírus, não consegue evitar uma ponta de orgulho. Com só 108 casos confirmados e uma morte, Taiwan conseguiu evitar a grande epidemia que paralisou a vizinha China. À parte a maioria das pessoas estarem usando máscaras no transporte público, a vida ali segue como sempre.

A experiência é um grande contraste em relação a 2003, quando o professor Su, à época diretor do Centro de Controle de Doenças de Taiwan, esteve à frente da batalha para conter a síndrome respiratória aguda grave (sars), que teve um efeito devastador na economia.

O clima em Taiwan também difere drasticamente da sensação de pânico e confusão que se abateu sobre a Europa e os Estados Unidos, onde a chegada da pandemia foi uma surpresa para muitos.

“A situação em outros países agora lembra a que tivemos aqui durante as primeiras semanas da propagação da sars em Taiwan no começo de 2003”, diz o professor Su. “Você não está preparado, você não tem experiência.”

A boa notícia para os governos ocidentais que agora lutam para responder à pandemia é que as medidas que Taiwan e outros países asiáticos implementaram ao longo dos últimos três meses parecem ter desacelerado e até mesmo amortecido o impacto da doença.

As restrições iniciais às viagens, a realização intensiva de testes e mapeamento dos contatos, além de regras rígidas de quarentena, foram cruciais. Saúde pública universal, gestões claras para a resposta da saúde pública e comunicação preventiva para mobilizar a população também ajudaram.

Essas políticas lograram conter o vírus em Taiwan e Cingapura e reduzir ou desacelerar o contágio na Coreia do Sul, Hong Kong e Japão.

Embora a Organização Mundial da Saúde (OMS) tenha sugerido que outros países aprendam com a China, que a entidade vem elogiando por “talvez o mais ambicioso, ágil e agressivo esforço de contenção de uma doença da história”, alguns especialistas em saúde acreditam que democracias asiáticas como Taiwan e Coreia do Sul podem ser modelos melhores de gestão da epidemia para os países ocidentais, dada a natureza diferente do sistema político chinês.

“Um dos fatores mais importantes no sucesso de nossa resposta é a transparência”, diz Chang Shan-chwen, especialista em doenças infecciosas e da comissão consultiva de especialistas do Centro de Comando Epidêmico, que cuida da resposta à epidemia em Taiwan. “No sistema autocrático da China, todo cidadão ficará em casa quando receber ordens para isso. Mas isso é algo que não pode ser fácil nos países livres e democráticos.”

A má notícia para governos ocidentais é que um componente vital da resposta asiática não pode ser copiado. A estratégia da região foi moldada por lembranças traumáticas de epidemias recentes - especialmente a sars - o que significa que os governos estavam mais bem preparados para reagir rápida e energicamente e as populações, mais dispostas a cooperar.

Leighanne Yuh, especialista em história e cultura da Coreia na Korea University, diz que a experiência com a sars e outras epidemias recentes, além da observação da rapidez da propagação do coronavírus na China, instilou uma “sensação de urgência” e adesão a “normas sociais” em todo o país.

“Como a Coreia do Sul já enfrentou esse tipo de epidemia, sabe que medidas tomar e quanto a situação é perigosa”, diz. “Se compararmos com os EUA, que não foi exposto a esse tipo de coisa, ao menos não recentemente, a resposta deles tem sido bem diferente.”

Para a Coreia do Sul, o país asiático que mais sofreu com o coronavírus depois da China, testar o maior número possível de pessoas tem sido um pilar da estratégia de combate ao coronavírus.


Nos locais de teste em que se pode entrar de carro, pessoal vestindo macacão de proteção brancos é visto se inclinando para dentro dos carros para coletar amostras de fluidos do motorista e dos passageiros. O resultado dos testes sai em questão de horas e ajuda a reduzir as aglomerações e exposição ao contágio em hospitais.

Ainda mais onipresentes são os alertas nas telas dos smartphones, atualizando a população sobre novos casos de contágio em suas áreas, além das duas transmissões diárias pelas autoridades de saúde com a atualização dos esforços de contenção da epidemia. O foco na comunicação aberta, juntamente com um sistema online para rastrear as pessoas que foram infectadas, vêm ajudando a limitar a disseminação do vírus.

A estratégia parece estar funcionando. A Coreia do Sul foi sacudida no fim de fevereiro, depois que uma série de casos ligados à seita Igreja de Jesus Shincheonji, o que fez o número de infecções disparar de menos de 50 para mais de 5.000 em apenas dez dias. Agora, depois de 270 mil testes e incontáveis alertas e coletivas de imprensa, o número de novos casos diários caiu de mais de 900, na fase de pico, para 98 ontem, com um total de 8.897 pessoas infectadas.

O país ainda não está fora de perigo - cem casos descobertos num call center em Seul na semana retrasada fizeram as autoridades termerem um novo surto. Mas o sucesso obtido até agora mostra que lições duras foram aprendidas com a síndrome respiratória por coronavírus do Oriente Médio (mers), que infectou 185 pessoas, matou 38 e causou pânico em 2015.

Em junho daquele ano, uma comissão da OMS criticou Seul por uma série de falhas críticas, como a falta de conscientização sobre o vírus entre os trabalhadores do setor de saúde e a população em geral, além de medidas fracas de controle de infecções nos hospitais, além de pacientes infectados que não eram mantidos isolados.

Jegal Dong-wook, professor de medicina laboratorial no St Mary Hospital, da Universidade Católica da Coreia do Sul, diz que desde então muitos hospitais foram equipados com unidades de controle de infecções e salas para isolar pacientes infectados. As diretrizes do país para doenças infecciosas também foram reformuladas, aconselhando as pessoas com sintomas respiratórios a visitar primeiro um centro especializado de triagem, em vez de hospitais.

O surto da mers expôs ainda a falta de kits de testes adequados, o que deixou os hospitais com dificuldades para lidar com o número crescente de casos suspeitos.

Hong Ki-ho, da Sociedade Coreana para a Medicina Laboratorial, diz que o novo sistema regulatório foi implementado para agilizar as aprovações de novos kits de testes desenvolvidos, quando o país enfrenta situações de emergência como surtos infecciosos.

“Uma das empresas que conheço levou duas semanas do ponto de aplicação ao seu uso de fato [durante a epidemia de coronavirus]. Esse desenvolvimento de kits de teste e seu uso no coronavírus foi possível graças à adoção desse novo sistema emergencial de aprovação de uso”, diz Hong.

Fora os seguidores da seita Shincheonji, que responderem por mais da metade dos casos na Coreia do Sul, a adesão da população às medidas protetivas, como o uso de máscaras, desinfetantes de mãos e a limitação dos contatos entre as pessoas, tem sido quase total, deixando pouca necessidade de fiscalização rígida do governo.

Uma população pronta para cumprir os controles rígidos também tem sido um fator-chave para o Japão na contenção do vírus. A conduta do governo na quarentena fracassada no navio de cruzeiro Diamond Princess e sua política de testar um número relativamente pequeno de pessoas foram duramente criticadas. Mas especialistas afirmam que normas sociais e culturais que impõem a autodisciplina e a obediência às orientações oficiais são um dos motivos de o Japão ter conseguido até agora limitar o número de infecções.

“Há uma norma social que diz que você não deve causar problemas para outras pessoas”, explica Kazuto Suzuki, especialista em política internacional da Universidade de Hokkaido. “Se você não se cuida e fica doente, isso está causando problemas para outras pessoas.” A epidemia de coronavírus levou ao uso rigoroso de desinfetantes de mão, e não usar máscara num trem desperta uma desaprovação imediata.


A obsessão do Japão com o uso de máscaras é anterior ao covid-19. As vendas explodiram durante o surto de gripe suína H1N1, em 2009. A venda de máscaras para famílias deverá alcançar 35 bilhões de ienes (US$ 330 milhões) este ano, superando o pico de 34 bilhões de ienes de 2009, segundo a empresa de pesquisas Fuji Keizai.

O governo de Hong Kong tem sido um dos mais proativos. A cidade suspendeu as aulas, fechou a maior parte das repartições públicas e orientou os moradores a evitarem aglomerações quando o número de casos confirmados do coronavírus estava abaixo de 20.

Hong Kong recorreu a um “supercomputador” da polícia, normalmente usado para investigar crimes complexos, para rastrear potenciais grandes disseminadores e pontos de contágio na cidade, após o seu emprego bem-sucedido durante a epidemia de sars. As autoridades de saúde também atualizam regularmente um mapa que mostra em que prédios vivem os pacientes do covid-19 ou onde eles estiveram pela última vez.

Os moradores vêm seguindo rigidamente as recomendações dos especialistas para lavar as mãos frequentemente e usar máscaras, já que as lembranças da epidemia de sars, que custou quase 300 vidas na cidade, ainda estão vivas.

Mas em nenhum outro lugar as lições da sars fizeram tanta diferença quanto em Taiwan, onde 73 pessoas morreram da doença. Devido ao isolamento da ilha das entidades internacionais, imposto pela China, Taiwan teve de se virar em grande parte sozinha.

Depois que a epidemia de sars perdeu força, o professor Su - que à época era o diretor do Centro de Controle de Doenças de Taiwan (CDC) - passou vários meses nos EUA estudando seus procedimentos e retornou no começo de 2004 para reformular todo o sistema de saúde pública de Taiwan.

Taiwan reforçou sua capacidade acrescentando dezenas de médicos aos quadros do Centro de Controle de Doenças e mais de mil salas de isolamento em hospitais e laboratórios de doenças infecciosas que podem realizar testes.

“Antes, somente o CDC tinha isso, mas, durante uma epidemia, eles não dão conta. Portanto, ao contratar laboratórios de centros médicos, podemos agora testar 2.400 pessoas por dia e ampliar facilmente essa capacidade, simplesmente acrescentando pessoal”, diz o professor Su. Taiwan criou ainda um sistema de logística com estoques de itens básicos - como 40 milhões de máscaras cirúrgicas.

Mas o maior efeito foi na política, num um país onde ela costuma ser tão polarizada como nos EUA. Depois de brigas frequentes e mal-entendidos entre o governo central e os locais durante a epidemia da sars, o professor Su desenvolveu uma estrutura de gerenciamento única: especialistas em doenças infecciosas nos centros médicos de toda a ilha são subordinados a um organismo chamado Comando Central Epidêmico, que funciona a partir do CDC. A autoridade do presidente desse órgão de especialistas é equivalente à dos ministros do governo. Médicos e funcionários do governo dizem que a estrutura ajuda a superar a divergências políticas e garante uma resposta rápida.

Por meio de uma reforma legislativa ampla, Taiwan criou uma base legal para limitar as liberdades civis no caso de uma epidemia e permitir multas para os que violem as regras de quarentena.

Todas essas reformas foram testadas durante a epidemia da gripe H1N1, em 2009. “Isso nos permitiu identificar coisas que não funcionavam, e muitas alterações foram feitas desde então”, diz Chang.

A epidemia atual pôs o sistema à prova nos mais mínimos detalhes - prova que até agora Taiwan parece ter superado. Embora tenha relações mais próximas com a China do que quase qualquer outro país, com mais de 1 milhão de cidadãos que moram ou trabalham lá e com mais de 2,7 milhões de chineses que visitaram a ilha no ano passado, Taiwan agora ocupa apenas o 50º lugar em termos do número de casos confirmados de coronavírus em todo o mundo.

Seu governo foi alertada cedo sobre a epidemia em Wuhan. No fim de dezembro, as autoridades de saúde começaram a fazer o controle dos passageiros de voos que chegavam da cidade chinesa, antes de permitir seu desembarque. Em 23 de janeiro - quando o isolamento em Wuhan começou - Taipé suspendeu todos os voos de e para a cidade, proibiu os residentes de Wuhan de entrar no país e impôs um monitoramento diário de saúde para pessoas com sintomas de problemas respiratórios que tinham chegado de qualquer lugar da China.

Em 26 de janeiro, Taiwan se tornou o primeiro país a impedir a entrada de praticamente todos os cidadãos chineses.

Os departamentos de imigração e de seguros de saúde conectaram seus bancos de dados, o que permitiu ao governo localizar pessoas com maior risco de infecção. À medida que mais informações foram disponibilizadas sobre as formas de transmissão e os períodos de incubação, o governo reforçou as exigências de quarentena. Também ampliou mais a sua rede de testes de coronavírus em pacientes com doenças respiratórias que tinham resultado negativo para influenza - uma iniciativa que revelou as primeiras transmissões locais de Taiwan e ajudou a detê-las antes que elas se disseminassem pela comunidade.

Especialistas internacionais elogiaram essa reação. “Taiwan é um exemplo de como uma sociedade pode responder rapidamente a uma crise e proteger os interesses de seus cidadãos”, concluiu um grupo de acadêmicos nos EUA em um artigo publicado no início deste mês.

Mas os governos ocidentais não parecem ter prestado muita atenção. “Talvez haja alguns especialistas em saúde na expectativa de que possamos ajudá-los com os testes”, diz Chang. “Mas, no que diz respeito à gestão da saúde pública, ninguém entrou em contato conosco em busca de aconselhamento.”

Colaboraram Kana Inagaki, em Tóquio, Stefania Palma, em Cingapura, Kang Buseong, em Seul, e Alice Woodhouse e Nicolle Liu, em Hong Kong (Tradução de Mário Zamarian e Lilian Carmona)

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