Avanço da covid na África contraria previsões sombrias

O Estado de S.Paulo 
Jornalistas: Max Bearak e Danielle Paquette, do The Washington Post

A manchete de um popular site de notícias queniano mal conseguia conter seu sarcasmo: “Estados Unidos, com 270 mil mortes e 13 milhões de infecções, alerta cidadãos para não viajarem ao Quênia, por alto risco de covid-19”.

Para muitos aqui, o medo dos americanos de pegar o novo coronavírus na África parece particularmente ridículo. Embora abriguem alguns dos sistemas de saúde menos desenvolvidos do mundo, quase todos os 54 países do continente registraram menos mortes pelo vírus nos últimos nove meses do que os Estados Unidos agora registram em um único dia.

Embora os testes tenham sido comparativamente limitados, o continente parece ter contrariado as previsões apocalípticas dos especialistas em saúde global. Os sinais eloquentes de surtos graves observados em outros lugares – hospitais lotados e aumento nas mortes – surgiram em apenas um punhado de países africanos. Pesquisas feitas pela Organização Mundial da Saúde descobriram um aumento de mortalidade insignificante na maioria dos países africanos, reduzindo a suspeita de que muitas mortes por covid-19 não são contadas.

“É altamente improvável que haja uma razão única e definitiva para esse fato”, disse Ngoy Nsenga, epidemiologista congolês e gerente do programa da OMS para resposta emergencial na África. “Populações jovens, climas mais quentes, menos tempo dentro de casa, menos viagens, menos obesidade e diabetes, imunidades derivadas de outras doenças, até mesmo de outros coronavírus – tudo isso deve desempenhar algum papel. Mas o que distingue a África de outros lugares que, como o Brasil, compartilham alguns desses fatores e, mesmo assim, foram duramente atingidos, são nossas intervenções humanas”.

Quase todos os países africanos fecharam suas fronteiras internacionais no início da pandemia. Muitos impuseram lockdowns, toques de recolher e proibições a certas atividades sociais, como bares e restaurantes, antes mesmo de seus primeiros casos. Nsenga e outros especialistas concordaram que, embora a adesão a outras ordens, como uso de máscaras e distanciamento social, possa ter sido negligente, sua pronta implementação, junto com medidas mais pesadas, foi eficaz para achatar a curva de infecções.

Mas essas intervenções causaram imensos danos econômicos e, como muitos governos africanos não observaram um crescimento descontrolado de casos, elas foram revertidas em muitos lugares.

Gana, Senegal e Camarões, por exemplo, fecharam alguns centros de tratamento especial, citando a falta de pacientes necessitados.

Autoridades de Yaoundé, a capital camaronesa, chegaram a transformar um estádio de futebol em instalação de quarentena, temendo o pior. Os atletas o tomaram de volta há três meses.

No Senegal, o número de centros para tratamento de covid-19 caiu de 23 para 14.

Os restaurantes estão lotados. As boates também. Os DJs locais retomaram suas festas noturnas nas praias.

As autoridades de saúde, no entanto, alertam que a ameaça está longe do fim – mesmo que os hospitais não estejam enchendo.

“Durante a temporada de férias, haverá uma tendência de grande movimento das capitais para as cidades do interior, áreas remotas, porque as pessoas querem encontrar suas famílias. Isso pode impulsionar a pandemia”, disse John Nkengasong, diretor do CDC da África, a repórteres esta semana. A África está registrando 10 mil a 12 mil casos por dia, rumo ao pico registrado em julho: 14 mil.

Ndongo Dia, chefe do laboratório de diagnóstico de vírus respiratórios do Instituto Pasteur em Dacar, capital do Senegal, não sabe ao certo por que o Senegal escapou do pior da pandemia.

O país recebeu elogios diversos por sua rápida resposta, a qual incluiu o fechamento da fronteira, a implementação de testes com resultados em quatro horas (enquanto os americanos esperavam dias) e a imposição de um toque de recolher até que as infecções diminuíssem.

Além disso, Dia disse: “a nossa sorte é a composição da nossa população. O número de casos graves vai ser muito menor em comparação com os países do norte, onde há mais idosos”.

Quase 60% das pessoas na África Subsaariana têm menos de 25 anos e apenas 3% têm mais de 65 anos, faixa etária em que a doença e a morte por coronavírus são mais comuns.

As taxas de mortalidade têm sido maiores na África do Sul, Argélia, Egito e Tunísia, onde uma grande porcentagem da população tem mais de 65 anos. Esses quatro países representam dois terços de todas as mortes por coronavírus na África.

Análises preliminares feitas pela OMS indicam que os africanos podem ter duas vezes mais probabilidade de contrair covid-19 sem complicações e que mais de 80% dos casos no continente foram assintomáticos – uma porcentagem muito maior do que em outras partes do mundo.

Um conjunto de hipóteses que muitos epidemiologistas africanos disseram merecer um estudo mais aprofundado sugere que a exposição a outras doenças infecciosas, que são comuns na África – ou suas vacinas, que muitos africanos recebem ao nascer – poderia ter conferido algum nível de imunidade contra o novo coronavírus.

“Somos frequentemente expostos a um grande número de insetos e patógenos: malária, febre tifoide, meningite e muito mais”, disse Yap Boum, epidemiologista camaronês e representante regional da Epicenter Africa, o braço de pesquisa dos Médicos Sem Fronteiras. “É algo diferente do que você tem nos Estados Unidos, na Europa e em outros lugares”.

Nsenga, gerente do programa emergencial da OMS, disse que, embora muitos fatores possam estar em jogo, alguns parecem estar fora de questão.

“Não são cepas diferentes. Temos uma rede de laboratórios em todo o continente e no mundo”, disse ele. “Nós sequenciamos vírus de muitos lugares, não vimos cepas dramaticamente diferentes aqui”.

O sequenciamento também desempenhou um papel no rastreamento de contato. Poucos países na África contataram efetivamente os pacientes rastreados covid-19, mas, na Nigéria, o monitoramento dos grupos de casos foi usado para redesenhar as intervenções para abordar os padrões comuns de disseminação do vírus.

Os pesquisadores adquiriram amostras de DNA de pessoas com resultado positivo e descobriram 13 cepas de coronavírus somente na Nigéria. É um método que os epidemiologistas aprenderam depois de sofrer repetidos surtos de doenças altamente mortais, como Ebola e febre de Lassa.

“Lidamos com surtos e epidemias há décadas”, disse Christian Happi, diretor do Centro Africano de Excelência para Genômica de Doenças Infecciosas na cidade de Ede, no sudoeste da Nigéria. “Aprendemos a lidar com doenças melhor do que países que não passam por esse tipo de coisa”. /W.POST, TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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