Cloroquina & Annita & Heparina & Covid-19 - Época )
Jornalista: Thiago Herdy


12/06/20 - Distante dos holofotes e do debate público mais estridente, uma legião de cientistas e agentes de saúde do país vem buscando alternativas de terapia para os doentes com Covid-19, num esforço que vai muito além da cloroquina. Embora só no Brasil estejam em andamento mais de 400 pesquisas, em meio à urgência da pandemia, o desenvolvimento de novos medicamentos é considerado sempre uma tarefa dispendiosa e demorada.

Por isso, boa parte dos estudos dedica-se à verificação da ação de medicamentos já existentes na guerra contra a doença. “Essa estratégia vale-se de conhecimento consolidado sobre a segurança e farmacocinética de medicamentos já aprovados para uso humano, evitando muitos dos complexos testes pré-clínicos”, disse Kleber Franchini, diretor do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), vinculado ao Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (Cnpem).

Desde o início da pandemia, o Cnpem dedica-se à investigação de moléculas que sejam candidatas a combater a infecção pelo coronaví- rus, por meio de técnicas que misturam biologia computacional e inteligência artificial. A capa de proteína que protege as moléculas de um vírus pode ser comparada a uma fechadura cujo acesso depende de chaves específicas. Essa chave, ou pequena molécula, é a substância específica que se busca em todo o mundo, na expectativa de neutralizar a ação do vírus e impedir sua reprodução. A partir de informações sobre a constituição genética do sars-CoV-2, os pesquisadores do Cnpem testaram 2 mil moléculas de bancos de dados públicos para verificar qual delas funcionaria como “chave” ideal.

A primeira filtragem resultou em 12 fármacos. Pela necessidade de baixo custo e poucos efeitos colaterais, um novo filtro resultou em seis substâncias. Testes in vitro — isto é, em laboratório, antes do uso em animais ou humanos — apontaram duas substâncias que tiveram bom desempenho. Uma foi escolhida para o teste em pacientes. “A nitazoxanida (mais conhecida como Annita) foi um composto que se destacou nos ensaios, reduzindo significativamente a carga viral em testes laboratoriais”, contou Franchini. Ele compartilhou dados com a Rede Vírus MCTIC, vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, que vem viabilizando testes com o medicamento em pacientes com sintomas leves ou graves de sete hospitais espalhados pelo país. Ainda não há resultado final para os experimentos.

Outro medicamento relativamente barato e que também vem sendo usado no tratamento da Covid-19 é a heparina, um dos medicamentos anticoagulantes mais prescritos no mundo, apresentado como resposta aos distúrbios de coagulação sanguínea que estariam na base dos sintomas mais graves da doença, como a insuficiência respiratória e a fibrose pulmonar. Estudos realizados na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) a partir de autópsias de pessoas que morreram em decorrência da doença já vinham apontando a existência de focos hemorrágicos na rede de pequenos vasos do pulmão, associados à presença de microtrombos — pequenos coágulos formados pela agregação de plaquetas.

O trabalho vai ao encontro do que vinha observando clinicamente a médica Elnara Negri, que atua no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e no Hospital Sírio-Libanês. Ela foi uma das primeiras pessoas a perceberem o “caráter trombótico” da doença causada pelo novo coronavírus.

Desde 27 de março, ela prescreve a heparina para pacientes graves, com diminuição de oxigenação, observada entre o sexto e o décimo dia de atuação da doença. “É importante monitorizar a oxigenação nesse período para iniciar o tratamento quanto antes nesse grupo de pacientes”, disse. A atuação rápida contra a formação de microtrombos vem resultando em recuperação mais veloz de infectados, ela garantiu. “Desde março já tratamos cerca de 100 pacientes e não perdemos nenhum. Não é a cura da doença, mas um método eficaz de tratamento para pacientes que desenvolveram a forma grave da Covid-19”, afirmou a médica, que fez questão de ressaltar que o tratamento só é eficaz quando realizado sob supervisão médica.

A cloroquina — droga erroneamente festejada como uma espécie de cura pelo presidente Jair Bolsonaro — já vinha sendo estudada e havia mostrado ação eficiente, in vitro, de inibição de outros vírus, como zika e a chikungunya. Ainda não havia sido testada, com eficácia, em humanos. Na China, terra dos primeiros casos do novo coronavírus no final do ano passado, os estudos iniciais com a substância apontaram a necessidade de dose altamente concentrada para se obter mínimo efeito antiviral.

Um estudo recente coordenado pela Fiocruz apontou alto risco para uso nessa condição e foi cancelado. Outro, divulgado em junho por cientistas da Universidade de Oxford, com 1.500 pacientes, detectou não haver benefícios da terapia da cloroquina para pacientes com Covid-19 e também informou ser melhor optar pela busca de novas terapias. Em estudo publicado em maio na revista científica The Lancet, cientistas suíços e americanos concluíram que pacientes que haviam tomado hidroxicloroquina ou cloroquina tinham maior risco de morte. Uma semana após a publicação, 0 estudo foi cancelado por apresentar graves inconsistências nos números.

A retratação aconteceu depois que a empresa americana Surgisphere, que forneceu dados hospitalares para a pesquisa, se negou a atender a um pedido de uma auditoria externa sob a alegação de que violaria acordos de confidencialidade com clientes. Antes, 0 jornal britânico The Guardian já havia revelado que a Surgisphere não tem entre seus funcionários profissionais com formação em dados ou ciência. A comunidade científica está buscando uma conclusão definitiva sobre a cloroquina, mas 0 presidente Jair Bolsonaro parece não ter dúvidas. Determinou que 0 Exército retomasse a produção do medicamento e aceitou a doação de 2 milhões de doses dos Estados Unidos.

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A garantia de mínima segurança para pesquisa com novos usos para medicamentos é fundamental para evitar tragédias como a ocorrida nos anos 1950, por causa da utilização incorreta da talidomida — medicação indicada como tranquilizante para melhorar 0 sono, mas que acabou sendo receitada para tratar enjoo matinal de mulheres grávidas. Quando já era vendida em mais de 50 países, descobriu-se que provocava malformação fetal — mais de 10 mil crianças foram afetadas pelo erro. Especialistas costumam dizer que nenhum medicamento é seguro. Por isso é válida a máxima de que 0 que separa 0 veneno do remédio é a dose. Encontrar um remédio que ataque 0 novo coronavírus sem afetar células do organismo hospedeiro segue como um dos maiores desafios deste começo do século XXI.

O último boletim da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) aponta a aprovação, de março até a primeira semana de junho, de 402 protocolos de pesquisa científica relacionados ao novo coronavírus, dos quais 85 são ensaios clínicos — isto é, investigações sobre 0 uso de medicamentos e terapias alternativas de combate à doença. São quase 35 mil pacientes observados hoje por representantes de 36 instituições de todo 0 país — como hospitais, centros de pesquisa e afins.

A maior parte dos estudos, 18, ainda está relacionada à pesquisa sobre 0 uso da cloroquina. Uma quantidade semelhante de estudos, 16, dedica-se a verificar o uso do plasma convalescente de pacientes recuperados da Covid-i9, como forma de tentar reduzir o tempo de pacientes graves nas UTIs. O procedimento consiste na transfusão do plasma — a parte líquida do sangue — de um paciente recuperado para alguém internado. A expectativa dos médicos é que os anticorpos presentes no plasma forneçam imunidade aos doentes. Em São Paulo, os hospitais Sírio-Libanês e Albert Einstein reuniram-se em consórcio para pesquisar os efeitos dessa terapia. Há também iniciativas semelhantes no Rio de Janeiro, Paraná, Distrito Federal, Pará, Paraíba, Espírito Santo e em Minas Gerais.

A técnica não é nova — foi usada no início do século passado no combate à gripe espanhola, e relatórios da época sugerem que funcionou. Pesquisas apontam o sucesso do procedimento no tratamento de doenças como sarampo e febre hemorrágica, mas insucesso para outras tantas, como o ebola.

De acordo com o hematologista Silvano Wendel Neto, do Sírio-Libanês, não se trata de solução mágica “que vá levar o paciente à alta no dia seguinte”, como se fosse um super-homem. “O que se busca é reduzir a dependência do respirador e dar tempo para que o próprio organismo produza anticorpos e fique bem”, disse o especialista, que há duas semanas apresentou a colegas os resultados da primeira etapa da pesquisa, relacionada à seleção de doadores. Após serem submetidos a uma série de exames, amostras de sangue deles foram encaminhadas ao laboratório de virologia da USP, para verificar se o volume de anticorpos presente era suficiente para matar novos vírus.

Cerca de 50 pessoas receberam nas últimas semanas um total de 600 mililitros de plasma convalescente por um período de dois ou três dias. Os resultados finais ainda não são conhecidos. No entanto, profissionais que têm participado do atendimento dizem que os efeitos mais animadores vêm se manifestando entre aqueles que ainda estão na fase inicial da doença, e não no período agudo, pós-intubação. Cenário semelhante foi atestado por estudo recente realizado com 39 pessoas que receberam plasma no Hospital Mount Sinai, em Nova York. A diferença de mortalidade entre o grupo que recebeu o tratamento e o grupo de controle não foi considerada relevante. Mas o resultado foi avaliado como animador quando se verificou que a necessidade de suplementação de oxigênio era consideravelmente menor entre os que receberam o tratamento. “Pacientes não entubados podem se beneficiar mais do que aqueles que necessitam de ventilação mecânica”, diz o relatório final do estudo.
Ainda são aguardados os resultados de estudos clínicos randomizados — aqueles em que pacientes são escolhidos aleatoriamente e parte deles recebe o tratamento que se quer testar, enquanto a outra parte recebe um placebo. Essa é considerada a maneira mais confiável de confirmar se a técnica é eficaz. Isso já está em curso em países como Estados Unidos, Alemanha e Reino Unido.

Se o uso de plasma convalescente vem se mostrando mais eficaz no tratamento inicial da doença, outra opção que envolve a transfusão sanguínea vem sendo testada para o momento mais crítico vivido pelos pacientes, também conhecido como a hora da tempestade de citocina, quando há uma reação exagerada do sistema imunológico.

A citocina é uma molécula que atua na comunicação entre as células do corpo e desempenha papel importante de regulação do sistema imunológico. A ação do novo coronavírus leva a uma aceleração do ataque às infecções do sistema respiratório, que pode ser ruim por acelerar processos inflamatórios e o risco de morte para o paciente. Pesquisadores do Hospital Albert Einstein conduzem estudo sobre o uso de células mesenquimais — extraídas da medula óssea de doadores e conhecidas por modular o sistema imunológico. “É um tratamento novo, para uma doença que também é nova”, contou o gerente médico de hemoterapia e terapia celular do Hospital Albert Einstein, José Mauro Kutner. A primeira aplicação em pacientes da equipe de Kutner deverá ocorrer nos próximos dias. Pesquisas semelhantes estão sendo conduzidas no Rio Grande do Sul, no Paraná e no Rio de Janeiro.

No procedimento, células colhidas de doadores são purificadas e expandidas em laboratório. Só são liberadas para aplicação em pacientes depois da realização de testes para examinar a capacidade de imunomodulação e garantir que não haverá contaminação por outro tipo de micro-organismo. Cada dose demora de 20 dias a um mês para ficar pronta e contém, em média, 1 milhão de células por quilo do paciente. A parte ruim é que custa caro: até R$ 100 mil cada. “Pesquisadores chineses fizeram as primeiras pesquisas falando que a célula mesenquimal poderia atuar desta forma (no tratamento da Covid-19), mas ainda há vários clinicai trials em andamento. É uma terapia que deverá ganhar força nos próximos meses”, disse Juliana Godoy, especialista em terapia celular do Departamento de Hemoterapia e Terapia Celular do Hospital Albert Einstein.

Na linha de frente dos hospitais e nos laboratórios dos centros científicos do Brasil e do mundo, a luta para derrotar o coronavírus continua a avançar.

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