O Globo
Jornalistas: Constança Tatsch e Rafael Garcia
06/06/21 - Com a velocidade da vacinação contra Covid-19 no país desacelerando no último mês, estados e municípios estão deixando crescer o estoque repassado pelo Ministério da Saúde. Apesar de, em média, os lotes recebidos terem sido aplicados em 14 dias, o trajeto da vacina do centro logístico até a injeção aplicada no braço dos brasileiros está levando agora 26 dias.
A ampliação da lacuna entre vacinas distribuídas e aplicadas consta do Sistema de Informação de Insumos Estratégicos (SIES), e da base nacional do Programa Nacional de Imunizações (PNI), ambos ligados ao Ministério da Saúde.
Desde o fim de fevereiro, quando a campanha deixou de depender de vacina pronta importada, o país vinha operando com um estoque livre de cerca de 25% das vacinas distribuídas. Agora, esse número se ampliou um pouco, para 30%. Isso corresponde atualmente a quase 40 milhões de doses, número que está se ampliando. Segundo as secretarias estaduais de Saúde, a reserva é menor, cerca de 24 milhões, mas também cresce.
O aumento da disparidade entre doses enviadas e aplicadas é preocupante porque, com a média móvel de mortes diárias por Covid-19 ainda no patamar de 1.700 óbitos, um atraso de duas semanas na distribuição da vacina até a ponta do sistema já implica em pessoas mortas que poderiam ter sido salvas.
O Amazonas é o estado com maior discrepância entre distribuição e aplicação. Só 46,5% das vacinas recebidas já foram dadas. O chefe da Secretaria estadual de Assistência do Interior, Cássio Espírito Santo, afirma que o estado é prejudicado pela distribuição intermitente do Ministério da Saúde (“como as vacinas chegam aos poucos, para ter mais efetividade nas viagens, juntamos um grande volume”), mas também por características locais:
— Nossos municípios são muito grandes e distantes. São seis dias subindo o rio para chegar a Palmeiras do Javari [a 1.500 km de Manaus, na fronteira com o Peru]. Depois, a equipe de vacinação vem descendo e fazendo o atendimento nas comunidades ribeirinhas por 21 dias, período em que não tem nem como lançar as vacinas no sistema pois não há acesso à internet.
O Rio enfrenta outro problema: com 57,9% das doses entregues aplicadas, o estado diz que envia a vacina a todas as cidades em apenas sete horas. A disparidade se deveria a lacunas de informação: “As imunizações estão ocorrendo, mas não é possível observar esses números por meio dos dados”, argumenta a Secretaria de Estado da Saúde. Na capital, a imunização já ocorre por idade e, na sexta-feira, o secretário municipal de Saúde, Daniel Soranz, frisou que o Rio entra, a partir de agora, numa fase “muito mais fácil” da vacinação.
O governo paulista, por sua vez, reconhece que poderia estar vacinando mais, mas também aponta a agulha para Brasília: “O SUS de SP tem plena condição de vacinar mais e assim o fará, sendo crucial que mais doses cheguem ao estado. (...) O ritmo atual de vacinação em todo o Brasil é fruto da lentidão e desorganização na aquisição de imunizantes contra Covid-19 por parte do Governo Federal”.
Multifatorial
Além dos motivos apontados pelos estados, especialistas afirmam que a burocracia da fila prioritária e o Censo desatualizado atrapalham o planejamento e atrasam a execução do plano de vacinação. A decisão de algumas unidades da federação de reservar estoque para a segunda dose também causa maior demora agora, pois a vacina da AstraZeneca, que passou a ser a mais usada, tem intervalo de aplicação de três meses.
Para Carla Domingues, ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunizações (PNI), a demora na aplicação da vacina é mesmo multifatorial. Uma das principais causas para a lentidão seria a imunização de grupos por comorbidade, sem um pré-cadastro, e por profissão.
— O processo de vacinar comorbidade é muito complexo. Tem que fazer cadastro, levar atestado, muitas pessoas tiveram que procurar um médico para obter a documentação. O mesmo vale para as categorias de classe — afirma a epidemiologista. — Mas como o ministério liberou agora vacinar por idade, as duas filas poderão andar ao mesmo tempo, dando mais celeridade.
A ex-coordenadora do PNI é crítica à atitude dos que querem escolher qual vacina receber e reconhece que o sistema de informação do programa de vacinação “é um problema que o Ministério da Saúde nunca conseguiu resolver, um calcanhar de Aquiles do SUS”.
Esta é, para o infectologista e pesquisador da Fiocruz Julio Croda, a principal causa para a diferença entre doses contra Covid -19 distribuídas e aplicadas.
— Todas as campanhas têm dificuldades para reportar os dados corretamente e em tempo oportuno. É preciso digitar pessoa por pessoa, e não há pessoal treinado para isso. O resultado é que o governo diz que enviou, o estado afirma que repassou, o município garante que aplicou, mas não informa ao sistema.
Essa demora no registro tem consequências na gestão da imunização: com semanas de atraso para informar a população protegida, o cenário fica distorcido e o tempo de intervenção para priorizar uma área, grupo ou faixa etária acaba passando.
Para Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações, a desaceleração na campanha ainda é reflexo do volume baixo de vacinas:
— Existem muitas lacunas na distribuição, mas estamos recebendo pouca vacina. É errada a percepção de que há menos procura: vejo é a população correndo de posto em posto atrás de doses.
Cálculo baseado em 2010
Até o cancelamento do Censo Demográfico de 2020 pode estar afetando o planejamento. Com dados defasados, municípios têm dificuldade de calcular suas populações de idosos e de diferentes classes profissionais:
— Esse cálculo hoje é todo feito com base na estrutura etária de 2010, com uma projeção que pode ser uma estimativa não adequada à realidade — afirma o epidemiologista José Cássio de Moraes, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, para quem o problema é mais perceptível em cidades pequenas. — Você pode ter município reclamando que tem mil idosos e só recebeu 800 doses de vacina.
O consenso entre os especialistas é que todas estas dificuldades são efeitos colaterais da escassez nacional de vacinas contra a Covid-19. O atraso na campanha não pode ser atribuído apenas aos 26 dias de lacuna para aplicação das doses, já que o governo federal levou 215 dias para fechar contratos de vacina, no caso da Pfizer. O contrato da CoronaVac para distribuição nacional também levou muito tempo, e causou atraso de mais de um mês no início da vacinação, segundo o Instituto Butantan. Uma demora que tem reflexos hoje.
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