Emagrecer o País e salvar o SUS

O Estado de S.Paulo
Jornalista: Antonio Carlos do Nascimento

07/11/20 - De repente tudo se tornou um grande esclarecimento pandêmico, com o mundo enxergando obviedades tão explícitas que refletir sobre nossa prévia cegueira é puro exercício de humildade. As contas da saúde pública, que, ao menos por aqui, eram atocaiadas só por opositores de gestões e Ministério Público, finalmente são observadas por nós, comuns, até então desinteressados fiscais do erário.

Sem negar distorções em inúmeros balancetes, o fato é que sob qualquer observatório os gastos com saúde são monumentais.Mas se a imprevisível virose nos tirou da ignorância contábil e criou amplo sentimento público de gratidão ao SUS por tudo o que evitou e evita na covid-19, ainda não sensibilizou Brasília para a inadiável criação de alternativas para custeá-lo. A regra do teto de gastos impõe esta demanda, mantendo-o deficitário, mas poupando-o do caos.

Embora seja legítimo apontar desvios de recursos na saúde como item desestabilizador, a conjectura é sem lastro, não pelo que acusa, mas pelo que se propõe justificar. Se criamos o SUS aos moldes da gestão de saúde pública do Reino Unido, nós o fizemos na estrutura, mas não em seu suporte. Pois, enquanto 8% do PIB britânico é entregue à saúde, vemos nossos 3,6% se esvanecerem sem contemplar enormes carências que haveria mesmo com cada centavo gasto com correção.

Conduzimos rotineiramente nossas ações em caráter emergencial, ou privilegiando subsetores, sem encontrar um denominador comum entre atenção básica, assistência hospitalar e ambulatorial e suas outras baias.

A divulgação do segundo volume da Pesquisa Nacional e Saúde (PNS) de 2019, resultante da parceria do IBGE com o Ministério da Saúde, em 21 de outubro, exemplifica o descrito anteriormente, pois deflagrou, como de costume, nosso peculiar senso emergencial e comumente manco.

Os dados mais expressivos da PNS apontam que o porcentual de adultos obesos passou de 12,2% entre 2002 e 2003 para 26,8% em 2019, enquanto a população adulta com excesso de peso foi de 43,3% para 61,7% no mesmo período. Imediatamente o Ministério da Saúde informou que porá à disposição, em caráter excepcional e temporário, recursos para qualificação de ações de promoção de saúde no que tange a doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs), obesidade incluída.

Sem questionar esse aporte à atenção básica, que tem entre suas missões a prevenção de doenças e a solução de seus agravos, aponto que já temos um quarto de nossa população adulta obesa e, mais que prevenir, precisamos tratá-los com resolutividade.

Há algum tempo não é mais cômodo condenar o tratamento farmacológico ou cirúrgico para a obesidade, pois seus críticos não encontraram alternativas além da covarde culpabilização da vítima, o obeso. Mas, enquanto o sistema se fartou com lucros estratosféricos provenientes das doenças resultantes da obesidade, foi bastante útil a desonesta afirmação de que o emagrecimento é uma questão de força de vontade.

Esse verdadeiro modelo de negócios utilizando sofrimento humano mostra sinais claros de cansaço e muitos governos de todo o mundo puxam o cordão da sensatez numérica para principiar uma força-tarefa que desative a desumana equação.

Tão importante quanto o aumento da mortalidade relacionada à obesidade é o custo exorbitante das complicações dessa doença, envolvendo gastos milionários com próteses ortopédicas, cirurgias coronarianas e, muito em breve, transplantes hepáticos, no que anoto os dispêndios mais ululantes sem incluir os absurdos custeios previdenciários de mutilados por variadas sequelas.

Há numerosos estudos anotando que o tratamento cirúrgico de obesos graves provoca, em médio prazo, fabulosa diminuição de gastos com patologias associadas à doença, desonerando instituições de saúde em grande extensão. Seguramente, tratamentos clínicos de vanguarda produzem as mesmas vantagens em portadores de excesso de peso ou obesidade menos severa, no que lhes previnem a evolução para outras moléstias ou complicações.

Confesso particular orgulho de participar da idealização do que nomeamos Núcleo de Obesidade, no município de Santo André, no ABC paulista, programa alicerçado numa linha de cuidado que contempla os fluxos desde a atenção básica até pontos de convergência, que podem determinar o tratamento cirúrgico de pacientes obesos graves. A solidificação dessa estratégia exige a interação de especialidades médicas com psicólogos, nutricionistas, assistentes sociais e enfermagem, assim como o necessário financiamento desse processo.

Do meu compilado observacional cedido pelas décadas de vivência deduzo que nada modulará mais a otimização dos dispêndios com saúde do que o enfrentamento corajoso, na prevenção e no tratamento, do excesso de peso e obesidade, sem declinar da imprescindível transparência contábil.

Estou seguro de que o financiamento do Ministério da Saúde para a criação de resolutivos Núcleos de Obesidade em todas as gestões de saúde pública de nosso país retiraria o SUS de sua agonia existencial em pouco tempo. E com o obeso faria o mesmo, mas de imediato.

(*) ANTONIO CARLOS DO NASCIMENTO É DOUTOR EM ENDOCRINOLOGIA PELA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, É MEMBRO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ENDOCRINOLOGIA E METABOLOGIA

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