Entenda por que alguns medicamentos para doenças raras custam milhões | A Gazeta

No fim do último mês de março, o pequeno capixaba Cauã Barbarioli Guimarães, de dois anos, conseguiu na Justiça o direito para receber a medicação Zolgensma, fármaco mais moderno existente na atualidade para o tratamento da Atrofia Muscular Espinhal (AME) Tipo 1, doença rara que o morador de Vitória teve diagnosticada ainda nos primeiros meses de vida. A decisão, ainda que parcial nos tribunais e inédita no Espírito Santo, obriga que a União forneça a medicação, com valor aproximado em R$ 12 milhões, e a coloca como a mais cara do mundo.

Diante de um valor tão elevado e praticamente inacessível até mesmo aqueles com situação financeira favorável, recorrer à Justiça é a saída mais viável que as famílias encontram para garantir o acesso aos remédios e terapias eficazes. No caso de Cauã, uma única dose do medicamento desenvolvido pelo laboratório Novartis ultrapassa consideravelmente a barreira dos milhões de reais.

No Brasil, o remédio está autorizado desde o ano passado, porém ainda não é fornecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O Zolgensma, aliás, é pauta central de um entrave entre a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) e o fabricante suíço. O laboratório entende que o valor aproximado em US$ 2,2 milhões (cerca de R$ 11,6 milhões) representa todo o esforço no desenvolvimento da terapia. Já a CMED, órgão do governo federal responsável pela definição dos preços máximos de comercialização de um medicamento no país, estipulou, em dezembro último, um valor de mercado máximo do mesmo em R$ 2,878 milhões – uma redução de cerca de 75% do indicado pela empresa.

Uma amostra do poderio financeiro que a corrida pelo desenvolvimento de novas terapias pode provocar se dá nos números apresentados pelo laboratório alemão BioNTech, que em parceria com a norte-americana Pfizer para desenvolvimento da primeira vacina para a Covid-19, obteve um lucro líquido superior a R$ 7,10 bilhões (1,12 bi de euros) somente nos três primeiros meses de 2021. No mesmo período do ano passado, a empresa teve prejuízo estimado em R$ 340 milhões (53,4 milhões de euros).

Esta situação conflituosa é só mais uma ponta deste universo amplo, difícil e muitas vezes inalcançável aos pacientes acometidos com doenças raras: por que eles custam tão caros? Seriam esses o preço pela vida? Estas são as perguntas que famílias e todos que se deparam com um valor altamente elevado se fazem perante produtos vitais à sobrevivência dos enfermos. Infelizmente, não tão raras como as doenças, são as mortes decorrentes da inacessibilidade aos remédios e terapias.

CENÁRIO ESTADUAL
No Espírito Santo, cerca de 280 mil capixabas convivem com algum tipo de doença rara e, desses, 210 mil são crianças e adolescentes. Estes números apresentados pela Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) indicam um quantitativo superior a 5% da população do Estado, atualmente estimada em pouco mais de 4 milhões de habitantes, segundo o IBGE, com alguma doença do tipo.

A Sesa esclarece ainda que para estabelecer uma referência, é preciso considerar que doença rara é aquela que afeta até 65 pessoas em cada 100.000 indivíduos. Esta também é a referência adotada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), para a situação. Assim sendo, estima-se que há entre 7 mil a 8 mil tipos de doenças raras em todo o mundo, e cerca de 6 a 8% da população mundial terá uma dessas doenças ao longo da vida, sendo que em 75% das vezes ela se manifestará já na infância. Já a AME afeta 1 em cada 10 mil nascidos vivos e é o principal fator genético de mortes em bebês.

No Brasil, apontam a pasta estadual e o Ministério da Saúde, cerca de 13 milhões de pessoas vivem com alguma doença rara. Um total de 80% delas decorrem de fatores genéticos, e as demais advêm de causas ambientais, infecciosas, imunológicas, entre outras.

PREÇOS TAMBÉM RAROS
A situação de Cauã, os cenários estadual e nacional, além dos números apresentados acima, ajudam a explicar os motivos para que um remédio seja tão caro. O desenvolvimento de medicamentos, em via de regra, demanda altos investimentos por parte dos fabricantes. Isto vale para um simples antitérmico, assim como para um indicado ao tratamento da AME, por exemplo.

Em uma análise fria, é uma situação evidente de “oferta e procura”. Para deixar ainda mais claro, a quantidade de pessoas que demanda o Zolgensma é infinitamente menor da que precisa usar uma Aspirina, logo gera menos vendas aos laboratórios, que também visam lucrar com as evoluções medicamentosas. Em resumo, o mercado para terapias raras é caro e muito restrito.

Pesa também para a elevação dos preços que poucas marcas dominam o mercado de medicamentos custosos. O setor de fármacos raros não é do interesse de todas. Exemplificando: puxe pela memória a quantidade de antigripais (remédios para gripe) existentes. Rapidamente se lembrará de pelo menos duas, três marcas. Agora tente se lembrar de apenas um indicado para a Lipofuscinose Neural Ceróide? Provavelmente você não saberá, da mesma forma que nem deva saber da existência desta doença.

PESQUISA E DESENVOLVIMENTO
Até que possa ser vendido ou ofertado em segurança, o medicamento precisa passar por inúmeras etapas, da identificação da doença à pesquisa, passando pelas muitas fases de testes. Estes processos não ocorrem do dia para a noite e demandam tempo, por vezes anos de desenvolvimento. Tudo isso carece de investimentos elevados em laboratórios, insumos, especialistas e outros custos impactantes.

Esta é a linha de argumentação que a Novartis apresenta para justificar o valor. “Neste momento, o preço entendido pela CMED não reflete o caráter inovador e disruptivo das terapias gênicas, que foram desenvolvidas para serem tratamentos em dose única e com estudos em andamento para doenças não classificadas como raras. No caso específico de Zolgensma, a terapia demonstrou benefícios terapêuticos e clínicos significativos no tratamento de AME”, disse a fabricante suíça.

O processo de fabricação vai muito além do que foi apresentado até aqui, mas, em resumo, acontece da seguinte forma:

01 - PESQUISA

Primeiro é feita a pesquisa química do medicamento, onde ocorre a identificação e é potencializado o composto que pode vir a ser um remédio. É neste estágio que geralmente são feitos os pedidos de patentes, atualmente de 10 anos para fármacos.

02 - FASE PRÉ-CLINICA
Superado este estágio, passa-se à fase pré-clínica. Nela, os estudos são desenvolvidos em ensaios in vitro e in vivo (animais). Esta fase é importante para avaliar o comportamento e reações que a medicação pode provocar no indivíduo e já atestar os níveis de eficácia. Na sequência chega-se à fase clínica, onde os testes passam a serem feitos em humanos, mas em diferentes níveis.

03 - FASE CLÍNICA
O primeiro engloba um grupo de até 100 pessoas doentes ou saudáveis. Os testes neste momento estabelecem níveis de segurança e confiabilidade da medicação em humanos, além de apontar possíveis reações. Cerca de 70% das drogas superam esta fase. Na fase dois, as pesquisas são voltadas para encontrar reações incomuns e já desenvolver a posologia (forma como o remédio é ministrado). Aqui, pouco mais de 30% dos fármacos em desenvolvimento avança à fase três. Nesta, o medicamento é comparado com outro similar já existente para a mesma doença. Esta testagem já é mais expandida e pode ser realizada com até 3 mil voluntários, mas o mínimo são 10% deste montante (300 pessoas) para que a validação ocorra. Este estágio pode demorar anos para ser concluído e somente de 25% a 30% dos remédios que chegam nesta fase prosseguem em desenvolvimento.

04 - APROVAÇÃO E CONTROLE
Por fim, na quarta e última fase, o remédio passa a ser comercializado após ser aprovado pelos órgãos competentes, no caso do Brasil, a Anvisa. O laboratório solicita a precificação, que é validada ou não pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos. Mesmo com o remédio já na prateleira da farmácia, o mesmo segue sendo acompanhado para possíveis reações não identificadas na fase de pesquisa. Este procedimento é chamado de farmacovigilância.

DIREITO NA JUSTIÇA
Para o presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB-ES, Raphael Câmara, a Justiça de uma forma geral, tem concedido mais liminares favoráveis aos pacientes acometidos com doenças raras, porém o cenário segue complexo e nem todos os necessitados conseguem ter acesso a medicamentos e terapias solicitados. Quando não atendidos na totalidade, são oferecidos opções similares.

“É uma situação muito difícil, pois está se lidando com vidas e não há como precificá-las. Ocorre que muitos dos pedidos judiciais feitos são de novos procedimentos, tratamentos e medicamentos que podem ainda não serem disponibilizados pela rede pública ou possuem um preço muito superior a uma opção que já é constantemente fornecida. O Ministério da Saúde, a pasta estadual ou o próprio município vão sempre ir por este caminho no intuito de economizar”, ponderou o advogado.

Câmara explica que esta situação não é por acaso. No Direito, esta situação é descrita como “reserva do possível”. Utilizando uma expressão popular, é como se o cobertor (dinheiro disponível) fosse curto para cobrir tudo o que precisa ser coberto (pacientes).

“Os estados e municípios indicam que não podem comprar todas as medicações porque isto impossibilitaria o cumprimento das obrigações ordinárias e comuns. Então a reserva do possível é isso, o estado pode dar até um certo ponto para que dê a todos. É como se ele falasse assim: ‘posso ceder até aqui, pois se eu der a mais, posso estar deixando de atender outro paciente do SUS”, explica o presidente da Comissão.

VALORES EM FORNECIMENTO
Os custos de medicações e terapias obrigam os estados a desprenderem grandes valores. Segundo a Sesa, anualmente apenas para a Atrofia Muscular Espinhal tipo I (AME), a Gerência de Assistência Farmacêutica (GEAF) atende dois pacientes via administrativa (padronizada), onde a aquisição e o fornecimento se dão via Ministério da Saúde. Outros três pacientes são atendidos via mandado judicial. Para os casos onde o medicamento Nusinersena é fornecido aos pacientes judiciais o custeio é estadual, sendo um custo de R$ 4.234.778,85 no período entre 01/01/2020 até 30/04/2021.

Dentre os remédios fornecidos pela Secretaria de Estado da Saúde para tratamento de doenças raras diversas, o medicamento Asfotase Alfa é o mais caro custando, em média, R$ 200 mil por mês para cuidar de um paciente.

“Posso dizer que o Cauã está vivo devido ao Spinraza. Embora eficaz, ele é muito invasivo na aplicação. Sempre temos de levar nosso filho ao hospital. Lá ele é sedado e o remédio é injetado diretamente na coluna. Foram nove aplicações até aqui. Agora com o Zolgensma, a medicação é ministrada uma única vez e ele não precisa ser submetido a esse procedimento, é bem mais simples. Acompanhamos casos semelhantes no exterior e aqui no Brasil e a resposta é muito positiva””

Já o Ministério da Saúde informa que oferece tratamento integral e gratuito para as doenças raras, desde o diagnóstico até o acompanhamento médico e, se for o caso, prestação de cuidados paliativos para melhorar a qualidade de vida do paciente e familiares. Todo esse cuidado é feito através de avaliações individualizadas das equipes multidisciplinares nos diversos serviços de saúde do País, como unidades de atenção básica, hospitais universitários, centros especializados de reabilitação, que são 19 atualmente, e atenção domiciliar.

Nos últimos três anos (2017-2020), os gastos apenas do Governo Federal para o cumprimento de decisões judiciais somaram R$ 3,7 bilhões. Em 2020, esses gastos chegaram a quase R$ 1,6 bilhão no âmbito da União. Atualmente, são mais de 14 mil demandas judiciais em andamento. A maior parte (70%) referente a medicamentos, seguidos por procedimentos (19%) e insumos (5%).

Fonte: A Gazeta Online ES

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