Funcionária de farmácia em Caracas atende clientes com as prateleiras praticamente vazias, em imagem de janeiro de 2016 — Foto: Reuters/Carlos Garcia Rawlins

Funcionária de farmácia em Caracas atende clientes com as prateleiras praticamente vazias, em imagem de janeiro de 2016 — Foto: Reuters/Carlos Garcia Rawlins

 

Laboratórios só produzem com 30% da sua capacidade instalada no país, diz associação.
 

 

Por Letícia Macedo, G1

22/02/2019 06h59

 

 

Venezuelanos que enfrentam a escassez de medicamentos em seu país aguardam com ansiedade o desfecho do braço de ferro entre o presidente Nicolás Maduro e o líder da oposição, Juan Guaidó, sobre a entrega da ajuda humanitária que está na fronteira da Venezuela. Pacientes e profissionais da área da saúde falaram ao G1 sobre a situação crítica do sistema de saúde. Alvo de sanções internacionais, o governo compra remédios no exterior e bloqueia a entrada da ajuda.

“Deus queira que essa ajuda humanitária entre. A nossa situação é crítica, é horrível. Está cada vez pior. O governo não quer, mas estamos precisando muito. Não temos remédios”, afirmou a aposentada Maria, de 60 anos, que sofre de retrocolite ulcerosa.

A doença crônica que atinge o intestino provoca várias complicações caso não receba tratamento adequado, como perda de peso e aparecimento de feridas pelo corpo.

A crise econômica enfrentada pela indústria farmacêutica no país explica em parte o problema das prateleiras vazias nas farmácias. Em um contexto de inflação galopante – que superou 1.000.000% em 2018— e de desvalorização do bolívar, os laboratórios não conseguem comprar matérias- primas e atualmente trabalham em média com cerca de apenas 30% da sua capacidade instalada, de acordo com a Câmara da Indústria Farmacêutica (Cifar).

“Em 2014, os laboratórios produziram 714 milhões de unidades. Existia uma grande variedade deles. De 2014 a 2018, a produção caiu 70%. No fim de 2018, produziu-se 178 milhões de unidades, mas não há variedade. O que se vê no mercado são antigripais, analgésicos e anti-inflamatórios, mas não se consegue remédios para problemas cardíacos, hipertensão arterial, diabetes, anticonvulsivos”, afirmou Tito Lopez, presidente da Cifar.

O fim de um programa que permitia aos laboratórios comprar dólares com uma taxa de câmbio favorável também contribuiu para o agravamento da situação no último ano.

Oscar Feo, especialista venezuelano em Saúde Pública e professor de Economia Política da Saúde, explica que o país sempre foi muito dependente do mercado internacional e o problema do desabastecimento foi intensificado devido às sanções internacionais que começaram a ser impostas pelos Estados Unidos há cerca de quatro anos.

“A reduzida produção de medicamentos na Venezuela depende das matérias-primas importadas, por isso, o bloqueio econômico tem sido fundamental para explicar a situação atual. Para entender a situação da saúde no país é preciso entender que estamos em guerra”, disse Feo ao G1.

O professor, que se define como um “crítico a políticas econômicas e à militarização dos quadros de governo Maduro”, acredita porém que “a situação atual da saúde foi induzida como parte da guerra econômica contra a Venezuela”.

 

Prateleiras de remédios vazias

 

Boletins da ONG Convite, que faz um monitoramento da saúde na Venezuela, indicam que a escassez de medicamentos permaneceu acima dos 80% durante todo o ano de 2018 em 160 farmácias visitadas na área metropolitana de Caracas, Maracaibo, Barquisimeto, Merida e Por la mar. Para elaborar o índice, a ONG leva em consideração a oferta de medicamentos para diabetes, hipertensão, infecção respiratórias agudas e diarreias.

“Essa constatação é muito grave, porque diabetes e hipertensão são doenças que exigem medicação controlada. Já as infecções respiratórias agudas e as diarreias são as duas doenças que mais atingem os venezuelanos”, afirmou Luiz Francisco Cabezas, presidente da ONG convite.

Uma dose de insulina a 32 mil bolívares ou uma cartela com 14 comprimidos de um remédio utilizado por hipertensos por 24 mil bolívares dão uma ideia da dificuldade para os doentes de ter acesso à medicação de uso contínuo em um país onde o salário mínimo é de 18 mil bolívares (US$ 20,9 ou cerca de R$ 77).

A crise atinge também o sistema de saúde público e torna ainda mais dramática a situação de pacientes que precisam de medicação de alto custo fornecidos pelo governo.

Juan*, um médico infectologista que acompanha centenas de soropositivos em um hospital público em Caracas, conta que a falta de antirretrovirais e remédios para combater as chamadas “doenças oportunistas” (que se aproveitam da fragilidade do sistema imunológico) têm prejudicado muito o tratamento desses pacientes.

O infectologia afirma que o Ministério da Saúde não está suprindo o sistema público de saúde e "comprar esses medicamentos nas farmácias é praticamente impossível por causa dos custos atuais”.

“Os exames que são muito necessários para esse grupo de pacientes, como medição da carga viral, só podem ser feitos por pacientes que tenham muito dinheiro. Assim, estamos fazendo um acompanhamento desses pacientes digno de países muito subdesenvolvidos”, afirmou o médico, que tem mais de 30 anos de experiência.

“Eu me vejo na obrigação de sugerir que o paciente, se não tem como custear o tratamento ou de receber medicamentos importados, que considere a possibilidade de emigrar para países onde o acesso ao tratamento seja mais fácil do que na Venezuela”, lamentou.

 

'Tenho vontade de viver'

 

Maria*, que é moradora da cidade de Cua, no estado de Miranda, no norte do país, recebeu o diagnóstico de retrocolite ulcerosa, uma doença que causa inflamação no intestino, em 2005. Porém, parou de tomar a medicação controlada que necessita há cerca de três anos, desde que a farmácia de alto custo do governo na sua região parou de fornecer os remédios.

“Como o meu tratamento é muito caro, os medicamentos estavam previstos no seguro social obrigatório. Por isso, fiquei na dependência da farmácia de alto custo, mas desde mais ou menos 2016 ela não fornece mais o tratamento”, afirmou.

Ela não sabe quanto custaria o seu tratamento, que inclui Mesalazina, Azulfidine, Azatioprina, além de vitaminas e ácido fólico.

“Não tem medicamentos nas farmácias e tampouco temos dinheiro para comprá-los no exterior. Atualmente, a minha pensão é de 1800 bolívares. Não dá para comprar nada. Nem queijo. Um quilo de queijo está custando 7 mil bolívares e o de carne o dobro”, contou.
 

A falta de tratamento agravada pela alimentação inadequada fez com que ela tivesse várias crises.

 

“Eu não tenho como ter uma alimentação equilibrada. Na cesta distribuída pelo governo vem macarrão, farinha, açúcar, leite, lentilhas, atum. Por isso, eu já tive várias recaídas. Nas crises, sofro com vômito, diarreia, sangramento, perda de peso”, afirmou Maria.

 

Em uma tentativa de conseguir ajuda para ela e outros pacientes que aguardam tratamento, ela fundou uma associação com amigos para buscar doações no exterior, a FundavEii (Fundacion Venezolana Voces Eii).

“Nos enviam medicamentos para várias patologias e distribuímos em várias regiões. Hoje são 600 associados que precisam de remédios. Mas o que arrecadamos nunca dá para todos. Ninguém está fazendo o tratamento como necessita.”

Apesar da saúde fragilizada, ela se sente motivada a lutar. “Tenho vontade de viver. E, se posso lutar, vou lutar. Essa é a única alternativa.”

 

Remédios sem origem

 

A busca por fornecedores de remédio tem aberto espaço para o aparecimento de medicamentos vendidos a granel e de origem duvidosa, principalmente em Maracaibo e Merida, que são estados próximos da Colômbia.

“Esse remédio vendido ‘a granel’ é um perigo. Não se sabe quem é o fabricante. Há o risco de estarem vendendo comprimidos vencidos, que não tenham a quantidade de miligramas que o paciente tem que tomar ou que não seja simplesmente o comprimido que ele está buscando. Há muitos relatos de fraudes”, afirma Luis.

Há uma semana, o governo anunciou a chegada de 933 toneladas de medicamentos e materiais médicos procedentes da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), de Cuba e da China (países aliados de Maduro) e de "algumas compras diretas" feitas pelo Ministério da Saúde, de acordo com a agência Efe.

 

Ajuda humanitária

Nicolás Maduro se nega a aceitar a ajuda humanitária enviada pelos Estados Unidos depois que o líder da oposição se autodeclarou presidente interino para organizar novas eleições. Maduro afirma que a entrada da ajuda seria um passo para uma "invasão estrangeira".

"É um show barato. Donald Trump não sabe onde fica a Venezuela. Inventaram uma suposta ajuda humanitária de uma comida podre, cancerígena e querem introduzi-la à força", disse Maduro, assegurando que o presidente americano planeja uma invasão militar ao país.

Contêineres bloqueiam a ponte Tienditas, que liga as cidades de Cúcuta (Colômbia) e Ureña (Venezuela). Há relatos de que o exército venezuelano reforçou sua presença na fronteira com Roraima, onde a ajuda oferecida pelo Brasil poderia ser entregue.

O Brasil está enviando até a fronteira brasileira alimentos e medicamentos para serem distribuídos para os venezuelanos a partir de sábado (23). A ajuda será transportada até Boa Vista e Pacaraima por motoristas brasileiros. A partir da fronteira os produtos deverão ser transportados por motoristas venezuelanos.

Para tentar barrar a entrega da ajuda brasileira, Maduro determinou na noite de quinta-feira (21) o fechamento da fronteira com o Brasil em Pacaraima (Roraima). Após o anúncio, muitos venezuelanos correram para vir ao Brasil e comprar estoques de mantimentos.

 

* Os nomes dos entrevistados foram alterados.

 

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