Fórum Saúde: O que deve ficar quando a pandemia passar?

Folha de S.Paulo 
Jornalista: Cláudia Collucci

01/09/20 - Desde a chegada do coronavírus ao Brasil, o sistema de saúde viu a Covid-19 se tornar a principal causa diária de morte (superando o câncer e o infarte), enfrentou o colapso em hospitais públicos e a queda brusca de receita na rede privada, mas tirou lições que devem nortear o período pós-pandemia.

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A incorporação da telemedicina nos cuidados à saúde é uma delas. Com regulamentação provisória, publicada para o contexto da pandemia, médicos tiveram aval para cuidar de pacientes a distância, inclusive prescrevendo digitalmente medicamentos, nas chamadas teleconsultas.

Ainda não se sabe quando e em que termos será a regulação definitiva dessa tecnologia, mas há consenso de que o modelo vai permanecer após a emergência sanitária.

“É muito difícil voltar atrás. Até na categoria médica, quem fazia lobby contrário talvez tenha entendido que a telemedicina pode expandir o mercado e aumentar o acesso de pacientes. Os especialistas podem estar agora no interior do país”, diz o médico Renato Couto, presidente do grupo IAG Saúde

O clínico geral e médico de família Gustavo Gusso, professor da USP, tem a mesma percepção: “Mesmo que uma regulamentação venha proteger a consulta presencial, a virtual veio para ficar. É inevitável.”

Segundo ele, tanto o SUS quanto os planos de saúde incorporaram tecnologias aos processos de cuidado durante a pandemia. “Tem aplicativo, tem token, muitos médicos ganharam celulares corporativos para fazer a consulta.”

No SUS, porém, essa realidade ainda é para poucos. Apenas 12% dos profissionais da atenção primária à saúde (APS) têm acesso a aparelhos institucionais para acompanhar pacientes, segundo pesquisa conduzida por USP, Fiocruz, Universidade Federal da Bahia e Universidade Federal de Pelotas.

As plataformas digitais também ganharam espaço dentro dos hospitais, que devem ampliar não só a oferta de assistência a distância aos pacientes não graves, mas também a troca de conhecimento entre instituições.

Em São Paulo, um programa de terapia intensiva do InCor (Instituto do Coração) tem orientado 19 hospitais estaduais do interior e do litoral paulista sobre a adoção de protocolos no cuidado dos doentes graves de Covid-19. Há uma proposta de tornar permanente essa ferramenta de orientação à distância.

O Proadi-SUS, um programa que reúne cinco hospitais de excelência que apoiam o SUS em diversos projetos em troca de renúncia fiscal, também já oferece consultoria remota a UTIs adultas e pediátricas do sistema público.

Com as teleconsultas, o desafio na rede privada é organizar a jornada do paciente para evitar que ele fique, agora virtualmente, ainda mais perdido no sistema, passando de especialista em especialista, acumulando inúmeros exames, mas sem ter o problema de saúde resolvido.

Uma atenção primária à saúde bem capacitada é apontada como o melhor caminho não só para resolver mais de 80% das queixas, como para gerenciar o cuidado na rede, por exemplo, encaminhando o paciente ao especialista mais indicado. É assim que funciona em países como Inglaterra e Canadá, onde o primeiro contato com o paciente é sempre virtual.

A previsão é que no pós-pandemia esse modelo se expanda, especialmente na rede privada, onde ainda há poucas iniciativas em APS. “Em vez de ir ao pronto-socorro, esse primeiro contato pode ser com uma equipe de atenção primária virtual. Esse medo de pronto-socorro talvez tenha vindo para ficar”, diz Gusso.

Fernando Torelly, superintendente corporativo do HCor (Hospital do Coração), concorda. “O hospital vai se tornar um lugar procurado por pacientes mais graves, os menos graves vão procurar ter um médico de referência.”

Outro aprendizado que a crise econômica gerada pela pandemia tem trazido ao setor foi a busca por mais eficiência. Com a suspensão dos procedimentos eletivos durante três meses e o medo das pessoas de buscarem atendimento, os hospitais privados tiveram queda de até 90% do movimento.

A previsão da Anahp (Associação Nacional de Hospitais Privados) é que as instituições terminem o ano com 30% a menos em caixa, ou R$ 13,1 bilhões.

“Para sobreviver, os hospitais vão ter que trabalhar no limite máximo da eficiência. Não pode mais haver desperdícios”, diz Torelly.

Até meados de agosto, comparado ao mesmo período de 2019, o HCor havia perdido R$ 75 milhões, o equivalente a 40 dias de receita. “Isso mantendo toda a despesa. Imagine uma empresa com 2.800 colaboradores com 40 dias a menos de receita. Isso ocorreu com todas as organizações.”

Nesse período, o hospital reviu todos os contratos com fornecedores, tentando adequar os custos às melhores práticas de mercado, o que resultou até agora em economia de 18% nas negociações. “Numa plataforma de R$ 50 milhões, R$ 60 milhões em contratos, dá um dinheirinho bom.”

Durante a pandemia, vários hospitais fizeram compras integradas de insumos para aumentar o poder de negociação com os fornecedores. Isso deve continuar, segundo Torelly.

Outra boa surpresa foi o maior entendimento entre hospitais e operadoras de saúde, o que, no caso do HCor, permitiu até uma revisão de antigas glosas, procedimentos feitos pelo hospital e não pagos pelos planos.

“A SulAmérica e o Bradesco foram muito parceiras. Uma terceira não teve a menor sensibilidade para entender o momento que estávamos vivendo”, diz ele, que preferiu não citar o nome da operadora.

Vários fornecedores também dilataram prazos de pagamento, em 60, 90 dias, o que permitiu que a instituição ganhasse fôlego.

“A pandemia aproximou hospitais de operadoras e de fornecedores. A gente não vai esquecer aqueles que estiveram com a gente.”

Para José Cechin, superintendente do IESS (Instituto de Estudos de Saúde Suplementar), há hoje um entendimento de que a pandemia não poupará ninguém.

Se, em um primeiro momento, os hospitais foram fortemente afetados e as operadoras poupadas (tiveram lucro pela suspensão dos procedimentos eletivos), isso não deve durar muito tempo, na opinião de Cechin.

“Mais dia, menos dia, os procedimentos postergados serão realizados e pode ser a vez de as operadoras passarem por dificuldades. Esse entendimento é muito importante na retomada.” No último trimestre, 327 mil pessoas perderam seus planos de saúde no país.

É PRECISO MANTER PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS DEPOIS

Renato Couto, do IAG Saúde, acha que a crise deve bater no setor da saúde no próximo ano, quando se esgotarem os recursos injetados na economia durante a pandemia. Isso deve levar as empresas a buscarem mais eficiência.

“A redução de custos ocorre de maneira bastante clara, e se você entregar mais valor ao paciente [qualidade, segurança], talvez esse esforço [pela busca de mais valor] melhore no setor.”

O uso de plataformas de gestão por planos de saúde e alguns municípios, como Belo Horizonte (MG), tem levado à redução de desperdícios e melhorado a qualidade do cuidado ao paciente.

Um estudo do grupo IAG mostra, em um período de 12 meses, falhas que levaram a 679 mil diárias hospitalares que poderiam ter sido evitadas —equivalentes a 37,7% do total de diárias estudadas.

Na avaliação dos especialistas, a pandemia também revelou que é preciso estreitar mais as parcerias público-privadas na saúde. Muitos julgam, por exemplo, que foi um erro a opção de muitos estados e municípios de construir hospitais de campanha para pacientes do SUS em locais onde havia ociosidade de leitos privados, que poderiam ter sido “alugados”.

“Se tivéssemos deslocado [pacientes públicos] para a rede privada, teríamos garantido a sustentabilidade dos hospitais e melhor assistência ao paciente. Um hospital de campanha não consegue ter processos maduros para entregar uma medicina qualificada”, diz Couto.

A expectativa é que outros tipos de parcerias público-privadas surgidas na pandemia —como a iniciativa Todos pela Saúde, que injetou R$ 1 bilhão em ações de enfrentamento ao coronavírus— continuem após a emergência sanitária, segundo Jurandir Frutuoso, secretário-executivo do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde).

Além das doações de EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), respiradores, oxímetros e ajuda na construção de centros de testagem, o projeto prestou consultorias aos gestores públicos.

Não é pelo dinheiro que a parceria deveria permanecer, afirma Frutuoso. “É pelo processo de trabalho. Aprendemos muito [com o Todos pela Saúde]. Uma ideia dessas não pode morrer.”

O momento é propício para o país rever os erros cometidos durante a pandemia, declara ele. “A falta de uma coordenação central [do governo federal] arrebentou o sistema de saúde, cada um ficou fazendo do seu jeito, do seu modo, e atirando para todos os lados para dar algum tipo de resposta.”

A agenda da retomada dos atendimentos eletivos no SUS está na ordem do dia dos gestores públicos. A expectativa é que a rede pública incorpore a infraestrutura ampliada, como os quase 10 mil novos leitos de UTI criados ao longo da pandemia.

A insuficiência de leitos de terapia intensiva era anterior à Covid, tanto que havia um grande número de ações judiciais pleiteando vagas em UTIs do SUS, e agora seria o momento de corrigir isso, afirma Frutuoso.

“Esses leitos foram ampliados às custas de estados e municípios. O Ministério da Saúde bancou o custeio deles. Agora precisamos manter essa estrutura”, diz o secretário-executivo do Conass.

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