Festival religioso na Índia atrai multidões em plena onda de covid

Folha de S.Paulo 
Jornalista: Samaan Lateef

Enquanto a Índia se transforma no epicentro global da Covid-19, o país tem de lidar com o governo anticientífico do partido Bharatiya Janata (BJP, na sigla em inglês), liderado pelo primeiro-ministro Narendra Modi, e a indiferença de parte da população com os protocolos de segurança.

Nesta quinta (15), a Índia registrou 200.739 infecções por coronavírus em um só dia, a marca mais alta desde o início da pandemia no país, enquanto o governo de Modi permitia a participação de milhões de pessoas em festivais religiosos hindus e comícios políticos em estados que realizarão eleições.

Especialistas em saúde pública dizem que a segunda onda foi estimulada pela total desconsideração das restrições impostas para combater o vírus, principalmente por multidões que não utilizam máscaras e se reúnem em grandes aglomerações em comícios políticos e eventos religiosos.

Quase 5 milhões de devotos hindus se espremem ombro a ombro nas margens do rio Ganges para um mergulho sagrado durante a festividade de Kumbh Mela, em Haridwar, no estado de Uttrakhand, no norte do país, governado pelo BJP. A festa, que dura um mês, é a maior comemoração do hinduísmo, com fiéis que vêm de todo o país para um banho ritualístico. Os organizadores preveem que, ao todo, 150 milhões de pessoas irão ao local da peregrinação, às margens do rio.

"Qualquer tipo de reunião vai aumentar a disseminação do vírus. O governo precisa impor protocolos para garantir um comportamento adequado, para que esses eventos não se tornem superdisseminadores", diz Dorairaj Prabhakaran, da Fundação de Saúde Pública da Índia, um instituto de ensino e pesquisa.

Políticos e ministros do governo Modi, no entanto, participaram da festa sem utilizar máscaras, e o ministro-chefe de Uttarakhand, Tirath Singh Rawat, afirmou que "ninguém será impedido em nome da Covid-19, pois temos a certeza de que a fé em Deus vai superar o medo do vírus". Rawat participou ativamente da comemoração, com máscara no pescoço, e não no rosto.

Ao menos 2.167 fiéis receberam o diagnóstico de Covid no local do evento, o que, claro, provoca temores de que o festival se torne um superpropagador do vírus. Apesar do surto recorde de casos na Índia, que ganhou a triste distinção de segundo país mais afetado pela doença no mundo, com mais de 14 milhões de infecções, as autoridades disseram que o Kumbh Mela vai continuar até 30 de abril.

Grande parte da culpa pelo fracasso da Índia em controlar a pandemia cabe a seus líderes políticos, que pregam cautela na TV, mas são descuidados em público. Milhões de pessoas participaram de comícios em cinco estados que terão eleição, contribuindo para o aumento do número de casos da doença.

Ao discursar à nação pela TV na última semana, Modi aconselhou a população a manter uma distância de 2 metros e usar máscara, logo depois de participar de comícios em Bengala Ocidental, onde saudou centenas de milhares de pessoas sem máscaras. Tanto o premiê como seu ministro do Interior, Amit Shah, fizeram intensa campanha, com Shah muitas vezes visto sem máscara.

"Os próprios líderes políticos são responsáveis pelo aumento das contaminações, ao permitir comícios lotados", diz Subhash Salunke, ex-autoridade da Organização Mundial de Saúde (OMS) que assessora o estado mais atingido, Maharashtra. "A tendência de alta permanecerá aqui por mais algumas semanas."

Enquanto os casos de Covid continuam crescendo, trabalhadores migrantes começam a deixar os empregos nas cidades para voltar a suas aldeias, temendo o anúncio repentino de um lockdown nacional como o do ano passado, que os obrigou a caminhar centenas de quilômetros de volta para casa.

Com os hospitais cheios de pacientes com coronavírus, médicos e autoridades pedem a Modi que amplie a vacinação aos mais jovens e imponha um lockdown em período limitado. Seis estados impuseram mini-confinamentos e toques de recolher noturnos, enquanto o premiê descarta um lockdown nacional.

Especialistas dizem que as contenções podem paralisar a economia do país, que se recuperava lentamente do retrocesso inicial. Ainda assim, Rijo M. John, professor-adjunto no Colégio de Ciências Sociais de Rajagiri, em Kochi, avalia que a pandemia se espalhou muito e que pode haver micro-lockdowns em vários bolsões afetados, "de uma maneira que não afete severamente a subsistência".

Também surgiram questões sobre o baixo índice de letalidade na Índia (125,45/1 milhão de habitantes), apesar de ostentar o segundo número de casos confirmados globalmente, atrás apenas dos EUA, cuja taxa de letalidade é de 1.705,13/1 milhão. Já o Brasil apresenta a cifra de 1.702,51/1 milhão nesse quesito.

Diante das claras diferenças nos números de casos e mortes no país, é provável que as autoridades indianas estejam contando a menos os óbitos por Covid. Segundo dados do Registro Geral da Índia, somente 77% das mortes são oficialmente registradas, e apenas 22% delas são certificadas por médicos.

"Na Índia, até nos melhores momentos, apenas 1 em cada 5 mortes é registrada por um médico", diz Ramanan Laxminarayan, fundador e diretor do Centro para Dinâmica de Doenças, Economia e Políticas, um grupo de pensadores sobre saúde. Enfatizando que a letalidade da Covid na Índia não é mais baixa que em outros países, Laxminarayan estima que as mortes atribuídas à Covid-19 estejam, na verdade, entre 1 milhão e 2 milhões. Hoje, oficialmente, o país registra 173.123 óbitos por coronavírus.

Ao lidar com a pandemia, especialistas dizem que o governo Modi ofereceu falsa sensação de esperança e vitória e enfim atraiu o país para o descaso. Mesmo antes da pandemia, especialistas em saúde pública acusaram o governo do premiê de promover a pseudociência e colocar milhões de vidas em risco.

Em fevereiro, a Índia aprovou um coquetel de ervas, Coronil, como medicação anti-Covid, quatro meses depois de permitir que as pessoas treinadas na antiga prática alternativa ayurveda realizassem cirurgias, provocando a reação de profissionais de saúde.

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