Morcegos podem nos ajudar a desenvolver imunidade à covid-19

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Valor Econômico 
Jornalistas: Clive Cookson, Anna Gross e Ian Bott, do Financial Times


09/09/20 - Os vírus adoram morcegos. Os mamíferos noturnos voadores são hospedeiros excelentes porque - assim como seres os humanos - eles vivem em grupos grandes e densos, suas viagens aéreas espalham germes entre populações e sua longevidade permite que um vírus persista por vários anos em um indivíduo.

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A grande diferença é que o sistema imunológico extraordinário dos morcegos doma e tolera muitos vírus que causam grandes estragos quando transmitidos aos seres humanos. Isso inclui o coronavírus responsável pela covid-19.

“Deveríamos observar o que os morcegos fazem para controlar o vírus e reproduzir isso de alguma forma”, diz Bernard Crespi, professor de Biologia Evolutiva da Universidade Simon Fraser, no Canadá, que faz parte de um grupo cada vez maior de cientistas que descobrem pistas para a pandemia na imunologia dos morcegos.

A imunologia está no centro das investigação científica e médica sobre a covid-19. Todo o esforço para explicar o curso excepcionalmente variado da doença, para tratá-la com medicamentos e preveni-la com vacinas depende de compreender como o vírus engana o sistema imunológico humano - ou vice-versa.

No imaginário popular, “imunidade” significa resistência a uma doença, enquanto para os cientistas isso é algo muito mais matizado e complexo. Os imunologistas a encaram mais como uma questão de grau - quão rápida foi a resposta inicial de um indivíduo a um patógeno? Suas células o reconheceram a partir de uma exposição anterior a ele e entraram em ação mais rapidamente? Quantos anticorpos essa resposta produziu e se foram os corretos?

Os coronavírus evoluíram nos morcegos por milhares ou milhões de anos. Eles se transferiram aos seres humanos muito recentemente - talvez tão recentemente como no ano passado, no caso do Sars-CoV-2, o vírus da covid-19.

Os morcegos transmitiram aos seres humanos um número muito maior de “zoonoses” perigosas, geralmente por meio de um animal que serviu como hospedeiro intermediário, do que todos os outros mamíferos juntos. Essa lista de vírus terríveis inclui o ebola, o marburg e o nipah, bem como os coronavírus que causam a síndrome respiratória aguda grave (sars), a síndrome respiratória do Oriente Médio (mers) e agora a covid-19.

“Os vírus são muito mais virulentos quando são transmitidos para os seres humanos a partir dos morcegos do que a partir de outros mamíferos”, diz Crespi. “Mas eles parecem causar pouco dano aos próprios morcegos.”

Subvertendo as defesas: A explicação está na maneira como esses mamíferos voadores controlam infecções. As maiores diferenças em relação a outros animais estão no “sistema imune inato”, a primeira linha de defesa contra patógenos invasores, diz Catherine Blish, imunologista especializada em vírus da Universidade Stanford. Os morcegos, em particular, produzem grandes quantidades de interferons, moléculas que desempenham papel fundamental na ativação da resposta imune mais ampla e em impedir a replicação do vírus.

Coronavírus como o Sars-CoV-2 evoluíram de modo a se propagar e a se desenvolver em morcegos ao subverter os interferons, diz Crespi: “O vírus realiza um ataque dissimulado, ao desligar os sistemas que o organismo emprega para revelar que está infectado.”

Vírus derivados de morcegos se mantêm imperturbáveis diante de outro aspecto da resposta inata humana - o desenvolvimento de uma febre, que visa tornar o organismo menos hospitaleiro aos germes. “O incrível esforço de voar faz com que a temperatura corporal dos morcegos suba para uma febre alta duas vezes por dia, coisa com a qual os patógenos que evoluíram junto com os morcegos por milênios passaram a se acostumar”, diz Andrew Cunningham, do Instituto de Zoologia de Londres.

Recente pesquisa sugere que, em muitos pacientes graves, o vírus faz com que a resposta imunológica aja na hora errada e em seguida fique descontrolada. O corpo reage tarde demais à infecção, liberando uma barreira indiscriminada de interferons e outras moléculas de sinalização imunológica chamadas citocinas. Essa “tempestade de citocina” ativa uma reação inflamatória exagerada, que inunda o paciente com anticorpos e com células sanguíneas que destroem tecidos humanos sem parar a infecção.

Os intererons foram saudados como potenciais “medicamentos milagrosos” nas décadas de 70 e 80. Não fizeram jus a esse epíteto, embora sejam um tratamento importante para a esclerose múltipla. Mas alguns acreditam que seu papel na adaptação do sistema imunológico poderia ser importante no combate à covid-19.

A Synairgen, uma empresa desmembrada da Universidade de Southampton, do Reino Unido, anunciou em 20 de julho que seu interferon beta administrado por inalação reduziu significativamente o risco de pacientes de covid-19 internados desenvolverem uma doença pulmonar grave.

Stephen Holgate, cofundador da Synairgen e professor de imunofarmacologia na Universidade de Southampton, diz que o interferon pareceu agir a tempo para evitar que os sistemas imunológicos dos pacientes entrassem numa intensa atividade prejudicial. A empresa está realizando um segundo teste clínico para descobrir se uma inalação precoce do interferon evitaria a hospitalização.

Resposta adaptativa: Quando a imunidade inata, a defesa inicial contra a infecção, funciona corretamente - como é o caso na maioria das pessoas infectadas com Sars-CoV-2 que desenvolvem sintomas brandos ou inexistentes da covid-19 -, o segundo estágio, a imunidade adaptativa, se instaura após alguns dias.

A imunidade adaptativa é a parte do sistema que recebeu a maior atenção durante a pandemia. Ela inclui as células T e B e os anticorpos que elas produzem. Todas evoluíram de maneira a procurar e destruir antígenos específicos - moléculas de proteína nos patógenos invasores - e a lembrar deles no caso de infecção futura.

Enquanto o sistema imune adaptativo está ativo, as células e substâncias químicas mensageiras se apressam em alcançar áreas do corpo em que essas células sanguíneas especializadas são armazenadas e em alertá-las sobre a chegada de um vírus. Algumas dessas células podem já ser programadas para atacar o vírus e, se estiverem presentes, se reproduzirão rapidamente e lançarão uma ofensiva.

Danny Altmann, professor de imunologia do Imperial College London, diz que a covid-19 produziu o nível mais elevado de todos os tempos de interesse do público em geral por seu campo de imunidade adaptativa. Apenas o surgimento da aids na década de 80 chegou próximo desse patamar.

As partes das células T e B que reconhecem os antígenos e se atracam com o vírus são seus receptores. “Fizemos um investimento genético fenomenal em conseguirmos produzir um enorme número de receptores diferentes para reconhecer patógenos diferentes”, diz Altmann.

Os cientistas estão começando a estudar a diversidade quase milagrosa de células imunológicas geradas por um processo de recombinação genética chamado V(D)J, no qual o organismo reúne três diferentes componentes a fim de fazer receptores capazes de enfrentar novos patógenos.

Isso pode produzir bilhões de receptores de formatos diferentes. Cada indivíduo deverá ter entre 10 milhões e 100 milhões de células T e B diferentes, dependendo da condição de seu sistema imunológico e de quantos antígenos encontra ao longo da vida.

“Quando você é exposto a um vírus, seu sistema imunológico seleciona os planos de ação que poderão enfrentar melhor a infecção, os copia e amplia esses clones muito rapidamente”, diz Feliz Breden, professor da Simon Fraser University, do Canadá.

Breden é diretor científico do iReceptor+, um consórcio internacional financiado pela União Europeia e pelo Canadá, que está criando um banco de dados genético de receptores de células imunes de pacientes de covid-19. Esse banco de dados já contém 200 milhões de sequências de DNA fornecidas por sete equipes de pesquisas de diferentes países.

A Adaptive Biotechnologies, de Seattle, desenvolveu um banco de dados aberto similar em parceria com a Microsoft, chamado ImmuneCode, que mapeou a resposta das células T de 1.000 pacientes de covid-19 a antígenos específicos de Sars-CoV-2.

“Olhando para a resposta ao Sars-CoV-2, você encontra o que chamamos de receptores ‘públicos’ com sequências genéticas compartilhadas por muitas pessoas e outras ‘privadas’, que não são vistas com tanta frequência”, diz Lande Baldo, diretor médico da Adaptive Biotechnologies.

“Estamos começando a ver padrões nos dados”, acrescenta Baldo. “O compartilhamento de dados vai acelerar muito as pesquisas sobre terapias e vacinas contra a covid-19. Se você está desenvolvendo uma vacina, quer que ela produza células imunes com sequências genéticas que apareçam no maior número possível de pacientes de covid-19.”

No organismo de um indivíduo infectado, “leva tempo para se conseguir a divisão de células B e T e a produção de anticorpos”, diz o professor Altmann. “Para conseguir a resposta imune completa à covid-19 você precisa chegar ao 11º ou 12º dia após a infecção.”

Nova exposição: Depois disso, a grande dúvida é por quanto tempo a resposta imunológica vai proteger contra uma nova exposição ao vírus. Após vários relatos não confirmados de reinfecção por Sars-CoV-2, o primeiro caso comprovado foi publicado no mês passado por pesquisadores da Universidade de Hong Kong.

Em março, um homem de 33 anos foi hospitalizado com sintomas moderados de covid-19 em Hong Kong. Em agosto, ele testou positivo novamente, quando passou por uma varredura no aeroporto ao retornar da Espanha. Os cientistas provaram que ele foi reinfectado, e não que o coronavírus havia permanecido em seu organismo, ao identificarem pegadas genéticas em cada uma das ocasiões. Elas mostraram que o segundo vírus tinha 24 diferenças do primeiro - mais do que poderia ter ocorrido através de mutações com o vírus permanecendo ativo no organismo de um indivíduo.

Imunologistas não ficaram surpresos com a notícia de reinfecção e acreditam que novos casos serão confirmados nos próximos meses. Eles ficaram animados de que o homem não apresentou nenhum sintoma da doença na segunda ocasião, o que sugere que seu sistema imunológico - preparado pela primeira infecção - controlou o vírus com mais sucesso quando se deparou novamente com ele.

Pode não ser nem mesmo necessário um encontro com o Sars-CoV-2 para o sistema imune adaptativo oferecer alguma proteção contra a covid-19. “Uma das maiores surpresas é que parece haver algumas respostas de memória de células T em pessoas que nunca foram infectadas pelo coronavírus”, diz Jennifer Juno, imunologista viral da Universidade de Melbourne.

Essa “reatividade cruzada” ocorre porque coronavírus relacionados, que vêm circulando nas pessoas há séculos ou milênios e muito raramente causam doenças piores que um resfriado comum, são parecidos o suficiente para reconhecer o Sars-CoV-2. Mas ainda não há evidências suficientes para avaliar a extensão da reatividade cruzada em populações de todas as partes do mundo ou a medida com que isso pode proteger contra a covid-19.

Mudanças genéticas: É claro que as vacinas são uma maneira muito mais sistemática e deliberada de evitar uma doença causada por um vírus desconhecido. Muitas empresas e países estão correndo para desenvolver vacinas contra a covid-19, a um custo total na casa dos bilhões de dólares e dezenas se encontram em estágios variados de testagem clínica, embora nenhuma tenha chegado até agora ao ponto de fornecer evidências claras de segurança e eficácia.

Uma vacina bem-desenvolvida poderá proporcionar uma melhor imunidade do que a infecção natural com o vírus, afirmam imunologistas. Mas a primeira geração das vacinas contra a covid-19 poderá ser boa apenas o suficiente para atenuar os sintomas, em vez de prevenir a infecção por completo.

Enquanto isso, o próprio Sars-CoV-2 está evoluindo enquanto se espalha por meio de seu novo hospedeiro: a humanidade. Cientistas estão observando algumas mudanças genéticas, especialmente na “proteína de pico”, que o coronavírus usa para entrar nas células humanas, que podem torná-lo mais contagioso e ao mesmo tempo mais fácil de ser reconhecido e enfrentado pelo sistema imunológico. Mas nenhuma transformou a natureza do vírus.

Quando um virus cruza a barreira das espécies, há uma forte pressão darwiniana pela adaptação ao seu novo ambiente. A teoria da evolução sugere que os vírus não querem matar seus hospedeiros, e sim se espalhar por meio deles da maneira mais eficiente possível e causando poucos danos, diz Gavin Screaton, diretor de ciências médicas da Universidade de Oxford.

“No longo prazo eles podem querer se adaptar ao hospedeiro e se tornar menos contagiosos”, diz ele. Os quatro coronavírus que hoje causam sintomas parecidos com os de uma gripe podem ter sido patógenos mais virulentos quando se transferiram inicialmente para os humanos - dois vindos de morcegos e dois de roedores.

Peter Openshaw, professor de medicina experimental do Imperial College London, diz que há muita especulação científica sobre se o Sars-CoV-2 vai “enfraquecer e se transformar em algo mais parecido com uma gripe comum”.

Aconteça o que acontecer, acrescenta ele, “temos uma oportunidade incrível de assistir em tempo real um vírus evoluindo depois de ter saltado de uma espécie para outra”. Imunologistas aprenderão lições valiosas com a covid-19 para a próxima e inevitável pandemia depois do salto de um vírus letal de um morcego (ou um rato) para a humanidade. (Tradução de Lilian Carmona, Mario Zamarian e Rachel Warszawski)

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