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Antibióticos superdosados ao longo do tempo na criação de animais acabam fortalecendo gradualmente esses micróbios. Imagem: Studio Romantic – Shutterstock

Por Flavia Correia | Editado por Lyncon Pradella | Olhar Digital

Relatório anual emitido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) diz que os antibióticos que estão atualmente em desenvolvimento em todo o mundo não são capazes de tratar as bactérias resistentes — chamadas superbactérias.

De acordo com o documento, que é uma revisão do relatório de 2020, foram analisadas as drogas antibacterianas em estágios de desenvolvimento clínico e pré-clínico ao redor do globo, e concluiu-se que nenhum país do mundo está desenvolvendo tratamentos antibacterianos adequados para conter o avanço das bactérias resistentes a medicamentos.

Atualmente, existem 43 antibióticos sendo criados que, todavia, são incapazes de frear as 13 superbactérias descritas na Lista de Patógenos Bacterianos Prioritários da OMS. Essa lista é usada desde 2017 para informar e orientar áreas prioritárias para pesquisa e desenvolvimento.

Em entrevista ao Jornal da USP, o médico infectologista e epidemiologista Fernando Bellissimo Rodrigues, professor do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da Universidade de São Paulo, explicou que “as superbactérias exibem resistências a múltiplas classes de antimicrobianos, que são usados rotineiramente no tratamento dessas bactérias”.

Uso indiscriminado de antibióticos fortalece superbactérias

Rodrigues diz que a seleção das espécies de bactérias resistentes é artificialmente induzida. “As mutações que conferem resistência aos antimicrobianos ocorrem naturalmente, em várias espécies, porém  não acarretam nenhuma vantagem à bactéria, a menos que na presença de antibiótico. Então, quanto mais antibiótico a gente usa, maior a probabilidade de seleção de mutantes resistentes àquela droga, por isso que o uso indiscriminado de antibióticos aumenta a incidência dessas cepas”.

Os antibióticos e antissépticos são substâncias importantes, que deveriam ser utilizadas apenas em momentos específicos, seguindo prescrições médicas ou de cirurgiões-dentistas. Ocorre que, na prática, o uso desses medicamentos é indiscriminado, o que pode prejudicar a saúde. “O uso indiscriminado não apenas não traz benefícios à saúde humana como pode trazer malefícios, por alterar a microbiota normal do corpo e aumentar a chance do indivíduo ser colonizado por bactérias multirresistentes”, afirma o infectologista.

Maioria dos antibióticos fabricados são destinados à agropecuária

Não é somente o mau uso em seres humanos que impacta o fortalecimento das superbactérias. Cerca de 80% dos antibióticos produzidos são usados na agropecuária. Segundo Rodrigues, “isso é uma coisa muito perigosa, porque está pressionando a resistência bacteriana em uma situação em que esses medicamentos muitas vezes não são necessários”.

Quando medicamentos antibióticos são superdosados ao longo do tempo na criação de animais, em vez de ajudarem a neutralizar agentes de doenças, acabam por fortalecer gradualmente esses micróbios, o que os torna inúteis.

A partir dessa resistência adquirida, as doenças começam a se propagar entre os animais criados para o consumo humano, afetando as pessoas por meio do contato dos animais com os trabalhadores responsáveis pela sua produção, transporte e comércio — além, é claro, do consumo de sua carne e de produtos derivados.

São poucos antibióticos verdadeiramente novos no mercado

O estudo da OMS revela que a maioria dos antibióticos disponíveis no mercado é de variações de antibióticos descobertos nos anos 80, e as perspectivas de mudança dessa realidade ainda são distantes. Isso porque apenas alguns medicamentos foram aprovados por agências regulatórias nos últimos anos. Atualmente, existem alguns produtos promissores em estudo e desenvolvimento, mas somente uma parte pequena deles chegará ao mercado devido aos desafios econômicos e científicos. 

De acordo com o epidemiologista, o processo de desenvolvimento de novos antibióticos é caro e trabalhoso, porque “para cada droga, de maneira genérica, que chega ao mercado como medicamento de sucesso, que passou por todas as fases de testes de aprovação de segurança, muitas vezes a indústria tem que fazer a triagem de até 10 mil compostos”.

Soma-se a isso o fato de que, em comparação a outras classes de medicamentos, desenvolver novos antibióticos, que serão usados somente em casos excepcionais de infecções e por um curto período de tempo, não é economicamente viável. 

Rodrigues explica que, por essa razão, as empresas estão deixando de investir na seleção e no desenvolvimento de novos antibióticos. “A menos quando recebem incentivos estatais”, ressalva.

Ele também destaca que “a Fundação Gates, o National Institutes of Health (NIH), nos EUA, e a União Europeia têm tentado compensar isso com fundos públicos, financiando o desenvolvimento de novas drogas”. 

Resistência das superbactérias ameaça o exercício da medicina global

Globalmente, a escalada da resistência bacteriana também ameaça o exercício da medicina, tendo em vista que a área é dependente dos antibióticos. “Realmente, é preocupante e, nos dias de hoje, a gente já tem pacientes morrendo nas UTIs sem tratamento antimicrobiano”, afirma Rodrigues.

O uso de medicamentos não prescritos e inadequados para tratar a Covid-19 também intensificou o problema dessa escalada global de resistência das bactérias, juntamente à quantidade de infecções hospitalares que pacientes internados acabam contraindo. Segundo o médico entrevistado pela reportagem, muitos pacientes que contraem a doença estão “sendo tratados abusivamente e desnecessariamente com antibióticos e sofrendo infecções hospitalares em decorrência disso”. 

Bactérias multirresistentes. Biofilme de bactérias Acinetobacter baumannii, o agente causador comum de infecções adquiridas em hospitais ilustração 3D. Imagem: Kateryna Kon -Shutterstock

Ele alerta que, ocasionalmente, pacientes que precisaram ser hospitalizados devido à Covid-19 contraem infecções provocadas por bactérias resistentes e morrem, “não pela doença, mas pelo Acinetobacter ou pela Klebsiella pneumoniae, que são os dois agentes mais resistentes de todos na atualidade”. E o médico afirma que “isso não é uma ameaça potencial: já está acontecendo nos nossos hospitais”.

A pandemia também canalizou muitos investimentos em pesquisa para o seu enfrentamento, “tornando escassos os recursos de pesquisa para o desenvolvimento de novas drogas ou métodos de conter a resistência bacteriana”, finaliza o professor.

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