Livro busca nos genes o espectro de uma boa velhice - 30/07/2021 - Ciência - Folha

 

Folha de S.Paulo 
Colunista: Marcelo Leite

 

“O Legado dos Genes”, em que pesem título e subtítulo (“O que a Ciência Pode nos Ensinar sobre o Envelhecimento”), é um livro de autoajuda, não de ciência. Autoajuda no bom sentido: recomendações fundadas em conhecimento científico, tanto quanto possível, sem a barreira da linguagem técnica.

O opúsculo das autoras Mayana Zatz e Martha San Juan França não economiza nas referências a pesquisas de instituições de renome. Em destaque aparece o Projeto 80mais, estudo em curso desde 2010 no Centro de Estudos do Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL), da USP, cria de Zatz.

A geneticista ganhou notoriedade em 2008 ao defender com sucesso, no Supremo Tribunal Federal, a pesquisa com células-tronco derivadas de embriões humanos. Hoje em dia as células pluripotentes podem ser obtidas sem destruir embriões e figuram entre as várias ferramentas de Zatz e colegas para investigar segredos biológicos do envelhecimento.

É o tema do 80mais, centrado no sequenciamento do genoma (soletração do DNA) de indivíduos saudáveis e ativos acima dos 80 anos. Ao esmiuçar genes de luminares como o físico José Goldemberg, hoje com 93 anos, o projeto almeja identificar variantes genéticas que possam explicar por que alguns velhos continuam bem de saúde física e mental apesar da inevitável decadência fisiológica.

Como narrado no livro pela jornalista de ciência Martha San Juan França, o 80mais cresceu muito no curso dos anos. Três parcerias contribuíram para isso. Primeiro, a equipe de Zatz foi abordada pelo projeto Sabe, da Faculdade de Saúde Pública da USP, que reunia dados clínicos de maiores de 60 anos desde o ano 2000. Depois, o Hospital Albert Einstein lhe propôs agregar ao acervo imagens de ressonância magnética do cérebro dos participantes.

A companhia americana Human Longevity, do famigerado cientista e empresário Craig Venter, se dispôs a sequenciar de graça os genomas completos de centenas de idosos brasileiros —desde que tivesse acesso aos dados. Depois os estrangeiros se desinteressaram, mas o cabedal de informações enriqueceu o banco do CEGH-CEL.

Com tamanho arsenal, alguém poderia concluir que muito já se descobriu sobre quais são os genes que influenciam longevidade e bem-estar na velhice. Só que não: ainda pouco se sabe sobre isso, o que talvez explique a brevidade da obra (compare-se com as 680 páginas de um bestseller como “O Gene”, do autor Siddartha Mukherjee).

Embora o livro explique bem que velhice não é doença, a genômica enfrenta as mesmas dificuldades de elucidar padecimentos de idosos encontradas para cumprir a promessa de desvendar moléstias e inaugurar a prometida medicina personalizada de precisão.

Duas décadas após a publicação do genoma humano, há exemplos de tratamentos bem-sucedidos assim derivados, mas poucos. Conhecem-se genes correlacionados com certas condições —de câncer de mama a Alzheimer—, mas tal conhecimento nem de longe permitiu derrotar tumores, demência ou depressão.

Verdade que o volume de Zatz e França explicita com cuidado os limites dessa estratégia científica de atirar no que se pode ver (bilhões de letras genéticas no DNA) na esperança de acertar no que ainda não se enxerga (minúcias bioquímicas de enfermidades que deem pistas para desenvolver terapias e medicamentos).

Em uma ou outra passagem o texto ainda recorre a expressões reducionistas, por exemplo ao afirmar que um gene “determina” tal característica ou proteína. Mas o livro navega a léguas de distância das hipérboles retóricas que ajudaram a levantar os quase US$ 3 bilhões do Projeto Genoma Humano.

Ao apresentar características demográficas do envelhecimento no Brasil, “O Legado dos Genes” torna evidente que o genoma, afinal, tem pouco a ver com a situação deprimente dos idosos por aqui. O projeto Sabe, por exemplo, constatou que quase tudo piorou entre o levantamento de 2000 e aquele feito em 2015-2017.

A incidência reportada de hipertensão foi de 53,3% para 66,3%; diabetes, de 17,9% para 28,3%; câncer, de 3,3% para 9,3%; problemas cardíacos, de 20% para 23,8%. Só doenças pulmonares crônicas recuaram, de 12,2% para 7,9%.

Diante dos parcos resultados da pesquisa genômica para mitigar males da velhice e das condições de vida a que relegamos os idosos no Brasil, a obra oferece pouco a quem adentra o túnel escuro dos 60 anos. Não mais que o senso comum: manter-se ativo intelectualmente, mesmo aposentado, exercitar-se, cuidar da alimentação e do sono, preservar o otimismo, estreitar laços com amigos e familiares...

Com a pandemia de Covid-19, é evidente, tudo isso se complicou, e a vida dos velhos só piorou. Vários arrimos de família morreram, muitos ainda ativos perderam empregos, sobreviventes ficaram confinados e deprimidos.

França retrata alguns velhos que sobreviveram a muita coisa, inclusive nonagenários e centenários que derrotaram o novo coronavírus. Os que ainda não chegamos lá (e tememos não chegar) sairíamos menos acabrunhados da leitura se esses resistentes ganhassem mais vida e espaço no livro, pois nunca antes os avós, pais e filhos deste país maltratado precisaram tanto de histórias de superação.

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