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by Gabriela Loureiro - De Londres para a BBC News Brasil

Matéria pulbicada em 5 outubro 2019

Em setembro de 2004, a multinacional farmacêutica Merck retirou do mercado seu remédio Vioxx, indicado para doenças articulatórias, devido ao risco de causar problemas cardiovasculares. A rápida retirada, de maneira voluntária pela empresa, de uma droga que no ano anterior havia gerado U$ 2,5 bilhões (R$ 10 bilhões) em vendas foi elogiada pela prestigiada publicação médica The Lancet como "um exemplo de prática farmacêutica responsável".

Um mês depois, o jornal americano The Wall Street Journal publicou e-mails vazados indicando que os executivos da Merck sabiam dos riscos do remédio havia anos. A Lancet rapidamente retirou seu elogio dizendo que havia sido "prematuro".

Para a canadense Linsey McGoey, autora do livro The Unknowers: How Strategic Ignorance Rules the world ("Os desconhecedores: como a ignorância estratégica rege o mundo", em tradução livre), ainda não traduzido para o português e lançado no mês passado no Reino Unido, o caso Vioxx é um exemplo de como pessoas, empresas e governos optam por ignorar informações para benefício próprio.

McGoey chama esse fenômeno de "ignorância estratégica": "A habilidade de explorar o desconhecimento para ganhar mais poder", disse à BBC News Brasil.

A socióloga e professora da Universidade de Essex foi a primeira pessoa a usar esse termo aplicado a instituições de regulamentação, um trabalho iniciado em sua tese de doutorado na London School of Economics (LSE). Em sua tese, McGoey investiga como indústrias farmacêuticas usam a ignorância como estratégia para aprovar medicamentos sem informar ao público sobre seus efeitos adversos.
No caso da Merck, com o vazamento de e-mails, ficou claro que os executivos da empresa escolheram ignorar os riscos do Vioxx e distorcer resultados de testes para favorecer a sua aprovação junto da Food Drug Administration (FDA), a agência de vigilância sanitária análoga à Anvisa nos EUA. Um teste realizado em 1999 comparando Vioxx com o anti-inflamatório naproxeno apontou que Vioxx apresentava menos efeitos gastrointestinais que o naproxeno, mas também um risco 80% maior de reações cardiovasculares adversas, incluindo risco de morte.

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A correspondência vazada pelo jornal mostra que o cientista-chefe da Merck na época, Edward Scolnick, escreveu um e-mail para seus colegas comentando o estudo, dizendo que "era uma pena". Os cientistas da Merck publicaram o estudo afirmando que Vioxx diminuía efeitos gastrointestinais enquanto o naproxeno diminuía o risco de doenças cardiovasculares – não que o Vioxx aumentava em 80% o risco.

O remédio continuou a ser vendido até que novos testes confirmaram seguidamente a gravidade do problema. Só nos Estados Unidos, mais de 30 mil pessoas processaram a empresa por complicações cardiovasculares causadas pela droga, e a Merck anunciou que gastaria U$ 4,85 bilhões (R$ 20 bilhões) para cobrir as indenizações de vítimas do remédio ou familiares de pessoas que morreram por causa da droga.

Em seu livro recém-lançado, a socióloga vai além dos casos da indústria farmacêutica e aponta como a ignorância é explorada por diferentes grupos para fins políticos em governos, decisões jurídicas, na mídia e até nas mais influentes teorias econômicas.

"Há hierarquias de ignorância e, em geral, a ignorância de pessoas simples é a mais criticada, mas eu argumento que essa hierarquia precisa ser invertida, porque é justamente entre as pessoas com maior poder que a ignorância se torna mais valiosa e com os efeitos políticos mais devastadores", diz McGoey.

"Apesar de a ignorância ser universal, diferentes grupos sociais a usam de maneiras específicas, e as pessoas com mais poder são as que mais lucram com a exploração deliberada de incertezas".

Entre os exemplos trazidos no livro, há um capítulo inteiro dedicado ao magnata Rupert Murdoch, que disse não saber que seus funcionários hackeavam telefones para obter furos jornalísticos no tabloide News of the World, em um dos maiores escândalos da mídia britânica das últimas décadas.

No caso de Murdoch, afirmar que ele não sabia dos grampeamentos de telefones – embora ele pudesse ter se informado caso quisesse – seria uma tática de ignorância estratégica, pois isso o protege de implicações jurídicas.

Apesar de ser um conceito novo na sociologia, a ignorância estratégica existiria há séculos e, segundo McGoey, isso prova que a pós-verdade não é um fenômeno recente. Eleita a palavra do ano pelo Dicionário Oxford em 2016, a pós-verdade foi descrita como o substantivo "que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais".

"Se você olhar para a história moderna, verá vários exemplos de pessoas tentando gerar fatos alternativos ou dizendo que a realidade de alguém não é verdade para ganhar vantagens políticas. Não há nada novo na tentativa de manipular as fronteiras entre o que é real e o que não é", afirma.

Um exemplo de pós-verdade, diz ela, seria a acusação do governo americano de que o Iraque produzia armas de destruição em massa, uma alegação nunca comprovada que foi usada para justificar a invasão ao país árabe em 2003. Hoje, diversos especialistas dizem que as grandes reservas de petróleo do país foram um fator importante, senão a principal razão, para a invasão.

"As redes sociais podem trazer novas formas de mediar a pós-verdade, mas essa manipulação não é um fenômeno novo. A invasão do Iraque, por exemplo, aconteceu após a manipulação de evidências e do que sabíamos até então para conseguir apoio político para uma intervenção", afirma.

'Homo ignorans'

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A socióloga diz que há três tipos de "homo ignorans": o ignorante inocente, que não tem ideia do que desconhece; o que entende que não sabe tudo e que reconhece que o que você não sabe é tão relevante quanto o que você sabe; e o agnotologista, que tenta fabricar incertezas ou uma falta de conhecimento público intencionalmente.

O terceiro tipo se refere à agnotologia, que é o estudo das políticas de produção de ignorância, um conceito criado pelo historiador americano Robert Proctor, da Universidade de Stanford, em 2005. Esse conceito seria aplicado a figuras de poder que querem esconder informações para benefício próprio.

Esse tipo de ignorante, sublinha McGoey no livro, pode estar em qualquer espectro político, sejam mais conservadores ou progressistas. No livro, ela cita dois presidentes americanos de partidos adversários que utilizam da mesma técnica. Um deles é o atual presidente americano Donald Trump, que diz que as mudanças climáticas são uma farsa porque reconhecer problemas ambientais atrapalharia seus interesses políticos e econômicos.

Outro é Barack Obama, seu antecessor, que tirou proveito da ausência de evidências de mortes de civis causadas por drones de uso militar para se esquivar de críticas no final de seu governo. Os ataques de drones como combate ao extremismo, uma tática intensificada durante a era Obama, tinham sua eficácia questionada por organizações de direitos humanos na época.

Pressionado sobre as mortes de civis causadas por drones no Oriente Médio, Obama disse em 2016 que entre 64 e 116 civis foram mortos nesse tipo de ataque durante seu governo. Em uma reportagem publicada no The Guardian, o jornalista Spencer Ackerman acusou o governo americano de apresentar uma contagem incompleta que não levou em conta ataques em países como Afeganistão, Síria e Iraque.

Apesar de tantos exemplos de ignorância por parte de executivos e chefes de Estado, McGoey argumenta que hierarquias de ignorância fazem com que algumas camadas da população – no caso as com menor poder político, econômico e social – sejam vistas como mais ignorantes.

Um exemplo dessa hierarquia é a visão construída sobre o eleitor médio do Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia (UE). Entre os críticos ao Brexit, há um entendimento comum de que muitos eleitores de classe operária votaram pela saída da União Europeia por ignorância.

Essa ideia foi popularizada após notícias apontando a explosão de buscas no Google perguntando "o que é a União Europeia" logo após o referendo. Mais tarde, porém, os relatórios foram escrutinados por um site de checagem de dados chamado Politifact, que apontou que cerca de 1 mil buscas foram realizadas naquela noite, colocando em perspectiva a ideia de que as pessoas que votaram pelo Brexit não sabiam o que é a UE, dado que o país tem 40 milhões de habitantes e contou com um não comparecimento eleitoral maior que 70% no referendo.

"Muitas vezes as pessoas reclamam da falta de conhecimento público sobre certos acontecimentos, mas essa ideia de déficit público de conhecimento é limitada porque geralmente coloca a culpa da ignorância no público em geral, ou em um sistema de educação ou na falta de investimento em educação", explica a socióloga.

"Mas ainda não foi estudada com profundidade a ideia de que mesmo que você tenha acesso a toda a educação do mundo você continuará institucionalmente posicionado de maneira que não seja vantajoso para você buscar conhecimento", diz a autora.

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Desconhecimento infinito

McGoey faz parte de um grupo emergente de acadêmicos que teorizam sobre a ignorância nas ciências sociais, econômicas e criminais dentro do campo que foi chamado de "estudos da ignorância". O primeiro manual internacional desse tipo de estudo foi publicado recentemente, em 2015, em resposta ao que os teóricos dessa área chamam de falta de atenção ao desconhecimento nas ciências sociais.

"A busca pelo conhecimento foi teorizada como a essência do ser humano", diz ela. "Mas, apesar de parecer óbvio que as pessoas queiram ignorar fatos, a ignorância não foi tão estudada quanto a geração de conhecimento". Parte do problema, segundo ela, é que a ignorância não pode ser medida como o conhecimento.

"A ignorância é imensurável e isso explica em parte seu poder. E isso é um desafio para cientistas sociais, porque eles fazem mapeamentos, anotações, tomam medidas para entender o tamanho de um fenômeno e a ignorância por sua natureza é o não saber".

Se a ignorância é infinita, política e imensurável, como resolver esse problema?

"Temos que entender que todos nós compartilhamos ignorância e devemos ser mais gentis uns com os outros por ignorarem algo, seja intencionalmente ou não", diz McGoey. "Depois, devemos olhar para sistemas educacionais e entender como eles estão implicados na geração de ignorância."

"Quando fizermos isso, acho que poderemos ver que temos mais a ganhar ao reconhecer nossas ignorâncias compartilhadas em vez de chamar alguém disso ou daquilo ou de assumir que o conhecimento de alguém é infinito, quando provavelmente é limitado. Acho que devemos escrutinar até mesmo as figuras mais veneradas da sociedade."

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Joni Mengaldo

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