Os pequenos notáveis nanomedicamentos

Sem-T%C3%ADtulo-1-4.jpg

by Luiza Abrahão Frank, Adriana Raffin Pohlman e Silvia Stanisçuaski Guterres

Ciência Hoje

Câncer e covid-19 são doenças muito diferentes, mas ambas podem ser combatidas com a ajuda de partículas tão pequenas que sequer são visíveis aos olhos humanos. A nanotecnologia farmacêutica é um novo campo de pesquisas capaz de desenvolver medicamentos inovadores, com reduzidos efeitos adversos para tratar o câncer, e as chamadas vacinas de mRNA, que, ao lado de outras vacinas, vêm assumindo importante papel no combate à pandemia de covid-19.

Nos últimos 50 anos, o número de medicamentos disponíveis para tratar diversas doenças tem aumentado consideravelmente. Na década de 1970, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou a primeira lista de medicamentos essenciais, havia um total de 208 itens capazes de tratar doenças transmissíveis e não transmissíveis. A partir de então, essa lista vem sendo atualizada, incorporando novos avanços científico-tecnológicos. A última atualização, em 2019, contemplou mais de 450 medicamentos, que servem como referência para mais de 150 países.

Apesar da eficácia desse arsenal terapêutico, que tem ajudado a aumentar a expectativa de vida, ainda há muitos desafios. Por exemplo, a maior parte dos medicamentos provoca efeitos adversos. O tratamento do câncer é um deles, pois, na busca pela cura ou pelo aumento de qualidade de vida, causa impactos que precisam ser contornados. Esses efeitos surgem quando o medicamento, além de atingir os tecidos-alvo, afeta tecidos ou órgãos saudáveis, o que significa que o tratamento não é específico. Como consequência, há uma diminuição da qualidade de vida dos pacientes, prejudicando a adesão ao tratamento.

Imagine a dificuldade enfrentada por uma pessoa que, além de lidar com a própria doença, precisa suportar fraqueza, náuseas, vômito, diarreia, sensibilidade na pele, úlceras, entre outros efeitos indesejados?

Outro grande desafio farmacêutico são as novas doenças de alto impacto social que surgem e exigem soluções rápidas e efetivas, como a covid-19. Nesse caso, o primeiro obstáculo não é tratar ou eliminar os efeitos adversos, como no câncer, porque ainda não há tratamento farmacológico para a covid-19, mas, sim, criar uma solução que imunize a população, permitindo frear o avanço da transmissão do novo vírus. Diante da pandemia, a ciência foi desafiada a desenvolver soluções em um curto período de tempo para deter o avanço da doença. Como resultado, vacinas para imunização contra o Sars-CoV-2, vírus causador da covid-19, já são uma realidade.

Em uma primeira análise, os desafios relacionados ao tratamento do câncer e da covid-19 parecem exigir abordagens tecnológicas distantes, por estarem associados a doenças muito diferentes. No entanto, soluções para ambos os casos podem vir das mesmas plataformas baseadas em um novo campo da ciência: a nanotecnologia farmacêutica, uma área do conhecimento na qual o desenvolvimento de medicamentos inovadores parte da criação de partículas pequenas no tamanho, mas grandes no efeito farmacológico. Esses medicamentos de base nanotecnológica podem contribuir para a superação dos problemas relacionados ao tratamento de câncer, para o desenvolvimento de vacinas e muito mais.

Invisível e benéfica
A nanotecnologia farmacêutica permite o desenvolvimento de partículas de tamanho nanométrico – um nanômetro (nm) equivale a 10-9 metros, uma escala indetectável aos nossos olhos (figura 1). Ela tem aplicações em terapias, diagnósticos e prevenção de doenças. Entre as vantagens, pode-se destacar: a liberação controlada do fármaco, a proteção contra degradação química do fármaco, o aumento da interação com tecidos e células, o melhor direcionamento do medicamento até o local de ação, a ampliação da eficácia terapêutica e a diminuição dos efeitos adversos.

EDITADO_Artigo_Nanotecnologia-farmaceutica_CH378-Figura-1.jpg

Figura 1. Tamanho das nanopartículas em comparação com outros elementos invisíveis a olho nu

Na corrente circulatória, as nanopartículas são capazes de mascarar as características físico-químicas do fármaco por elas transportado. Dessa forma, parâmetros determinantes para o efeito farmacológico (absorção, distribuição e eliminação), assim como a seletividade para cruzar barreiras biológicas, passam a ser governados pelas características próprias das nanopartículas, que atuam como transportadores.

Na atualidade, o uso da nanotecnologia se consolida como uma das tecnologias mais inovadoras para o aprimoramento terapêutico. Normalmente, os nanomedicamentos são desenvolvidos com nanopartículas biodegradáveis, que são eliminadas do organismo. Por esse motivo, são considerados seguros. Por outro lado, as nanopartículas biopersistentes, que têm potencial de se acumularem no organismo, merecem estudos complementares para avaliar seus possíveis efeitos tóxicos antes de serem consideradas na terapêutica. Estudos na área de nanotoxicologia têm sido tópicos de pesquisa importantes nas últimas duas décadas.

Precisão no tratamento do câncer
No tratamento de câncer, as nanopartículas são capazes de levar fármacos diretamente até as células defeituosas e entregá-los de maneira controlada dentro do tecido tumoral. E como isso acontece? Para entender, primeiramente, é importante conhecer o que é o ‘efeito de permeabilidade e retenção aumentadas’, que acontece depois que as nanopartículas são administradas na corrente circulatória, por injeção (figura 2).

EDITADO_Artigo_Nanotecnologia-farmaceutica_CH378-Figura-2-Recovered.jpg

Figura 2. As nanopartículas têm maior facilidade de penetrar e se acumular no tecido tumoral (esquerda) e nas células de defesa do sistema imune (direita), levando junto um agente terapêutico (para combater o câncer) ou moléculas capazes de iniciar a produção de anticorpos pelo sistema imune

À medida que um tumor sólido (tipo de tumor que não tem origem nas células sanguíneas) se desenvolve, ele apresenta angiogênese, que é o crescimento de novos vasos sanguíneos irregulares e que apresentam maior permeabilidade, oferecendo baixa resistência à difusão para dentro do tumor. Aproveitando essa condição, as nanopartículas presentes na corrente sanguínea se acumulam no tecido tumoral. Além disso, nos tumores, a função linfática é defeituosa, o que faz com que moléculas ou estruturas tenham dificuldade em se difundir de volta para a circulação sanguínea e serem reabsorvidas. Como consequência, as nanopartículas que penetram no tecido tumoral não são facilmente eliminadas e nele se acumulam. Esse processo leva a efeitos muito vantajosos, como diminuição da dose necessária do fármaco e a diminuição dos seus efeitos adversos.

As aplicações mais recentes dessa tecnologia aproveitam a superfície das nanopartículas como estratégia para aumentar ainda mais o direcionamento até o tumor. As chamadas nanopartículas ‘inteligentes’ ou ‘decoradas’ são sensíveis a alterações de fatores externos, como pH, temperatura e campo magnético. Sendo assim, elas também são estruturas versáteis, pois podem ser modificadas e se tornar ainda mais vantajosas do ponto de vista terapêutico.

No mercado atual, são vários os nanomedicamentos que veiculam fármacos para o tratamento de diversos tipos de câncer, com destaque para os lipossomas de doxorrubicina (usados contra câncer de ovário, de mama metastático, de pulmão de células não-pequenas, de mieloma múltiplo e Sarcoma de Kaposi) e as nanopartículas de paclitaxel (usadas contra câncer de mama metastático, de pulmão de células não-pequenas e de pâncreas metastático). Os principais benefícios são o aumento da eficácia e redução da toxicidade.

Nanovacinas para novas doenças

com-degrade-2.jpg

A nanotecnologia farmacêutica vem chamando a atenção, recentemente, no desenvolvimento de nanovacinas

A nanotecnologia farmacêutica vem chamando a atenção, recentemente, no desenvolvimento de nanovacinas. Nesse caso, as nanopartículas são desenvolvidas com o objetivo de apresentar às nossas células de defesa moléculas de agentes agressores (antígenos) que seriam os responsáveis pela manifestação de uma doença viral, como a covid-19. Assim, as células de defesa são informadas da necessidade de começar a produção de anticorpos capazes de combater os agentes agressores, isto é, os vírus.

É nesse contexto de pandemia e de crise econômica que a ciência traz mais uma das suas brilhantes contribuições. A tecnologia de produção das nanovacinas utilizadas para gerar imunidade contra o novo coronavírus vem sendo estudada há mais de uma década para combater doenças como o câncer. Trata-se de um método considerado mais seguro, pois, em vez de utilizar bactérias ou vírus inativados ou enfraquecidos para apresentarem o antígeno às células de defesa, as nanopartículas funcionam como vetores de direcionamento.

E como funcionam essas vacinas? Em laboratório, o mRNA (RNA mensageiro sintético) do novo coronavírus é produzido, e essa sequência genética é colocada dentro de uma nanopartícula, que, por sua vez, protege o mRNA da degradação biológica e permite introduzi-lo na célula-alvo. Dentro da célula, o mRNA informa a necessidade de produzir a proteína S (proteína Spike, que compõe o Sars-CoV-2 e é responsável pela sua entrada nas células). Quando a proteína S (que, nesse caso, não é nociva) é produzida, inicia-se a fabricação de anticorpos, provocando, assim, uma resposta imunológica. As nanovacinas também apresentam capacidade de estimular células do sistema imune, e recentes trabalhos sugerem que essa vantagem pode ser uma excelente abordagem para imunização de pacientes com câncer, uma vez que eles apresentam o sistema imune comprometido.

Alguns países que utilizaram as nanovacinas para o enfrentamento da pandemia de covid-19 apresentaram queda significativa na taxa de transmissão da doença, após grande parte da população estar imunizada. Esses dados sugerem que as nanovacinas de mRNA podem conter a transmissão do vírus em pacientes assintomáticos, o que demonstra sua alta performance e efetividade frente às vacinas convencionais.

Esses resultados animaram os pesquisadores, a população e também os governos, pois inicialmente pensava-se que as vacinas agiriam diminuindo quadros graves da doença e, com isso, o número de internações hospitalares. Porém, as expectativas foram superadas.

Uma recente análise, publicada pela equipe editorial da revista Nature, demonstrou que a aplicação dessa inovação foi possível graças às pesquisas realizadas em laboratórios acadêmicos ou pequenas empresas de biotecnologia e suas posteriores interações com corporações maiores, para que as nanovacinas fossem produzidas e licenciadas.

Apesar dos bons resultados, as novas variantes do coronavírus trouxeram uma questão adicional: as vacinas teriam a capacidade de proteger contra as novas cepas do vírus? E a ciência mais uma vez está correndo contra o tempo. Um recente estudo publicado na revista Science demonstrou que as nanopartículas, devido à sua versatilidade, têm potencial para serem utilizadas como carreadoras simultâneas de diferentes antígenos para aumentar a proteção frente às variantes do novo coronavírus. Dessa forma, mais uma vez a ciência busca responder questões atuais e de alto impacto social e econômico por meio da tecnologia e inovação, a fim de contribuir para a manutenção da vida e a continuidade da economia.

E o que o futuro promete?

sa.jpg

Atualmente, existem mais de 50 nanomedicamentos e produtos baseados em nanotecnologia aprovados por órgãos reguladores

O progresso da nanomedicina pode ser evidenciado não somente na área científica e acadêmica, mas também nos protocolos clínicos experimentais que estão sendo conduzidos em grandes centros e hospitais ao redor do mundo. Atualmente, existem mais de 50 nanomedicamentos e produtos baseados em nanotecnologia aprovados por órgãos reguladores e, dentre eles, estão incluídos não somente nanomedicamentos para o tratamento do câncer e nanovacinas, mas também nanofármacos para infecções fúngicas e doenças genéticas como a amiloidose hereditária mediada por transtirretina (hATTR), que é potencialmente fatal.

Há perspectivas de que um número maior de doenças possa ser tratado com essa tecnologia. Uma pesquisa no site Clinical Trials, da Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos, apontou que 244 produtos baseados em nanopartículas passam por estudos clínicos (fase 1 a fase 4) para doenças autoimunes, cardiovasculares, genéticas, doenças inflamatórias, dentre outras. Nos últimos anos, empresas multinacionais, como Pfizer, Novartis, Sanofi e Moderna, têm investido em pesquisa para aumentar seu portfólio de medicamentos inovadores e nanovacinas.

Uma das maiores tendências nessa área, certamente, está relacionada ao ‘tratamento personalizado’. Na atualidade, o maior desafio na terapêutica é olhar o paciente como um indivíduo único, entender o estágio da doença e a contribuição de seu sistema imunológico dentro de um quadro específico e individual para a melhor escolha de tratamento. A partir desse entendimento, o desafio será selecionar as estratégias nanotecnológicas de forma individual para obtenção de medicamentos customizados. Trata-se de um desafio translacional, mas que certamente apresentará impactos socioeconômicos inestimáveis.

– Frank, LA; Contri, RV; Beck, RC; Pohlmann, AR; Guterres, SS. Improving drug biological effects by encapsulation into polymeric nanocapsules. Wiley Interdisciplinary Reviews: Nanomedicine and Nanobiotechnology. Setembro de 2015, 7(5):623-39.

– Martins, JP; Das Neves, J; de la Fuente, M; Celia, C; Florindo, H; Günday-Türeli, N; Popat, A; Santos, JL; Sousa, F; Schmid, R; Wolfram, J. The solid progress of nanomedicine. Drug delivery and translational research. Junho de 2020, 10(3):726-9.

– Cohen, AA; Gnanapragasam, PN; Lee, YE; Hoffman, PR; Ou, S; Kakutani, LM; Keeffe, JR; Wu, HJ; Howarth, M; West, AP; Barnes, CO. Mosaic nanoparticles elicit cross-reactive immune responses to zoonotic coronaviruses in mice. Science. Fevereiro de 2021, 371(6530):735-41.

– Nanomedicine and the COVID-19 vaccines. Nature Nanotechnology. Dezembro de 2020, 15, 963.

Luiza Abrahão Frank, Adriana Raffin Pohlman e Silvia Stanisçuaski Guterres
Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Enviar-me um e-mail quando as pessoas deixarem os seus comentários –

DikaJob de

Para adicionar comentários, você deve ser membro de DikaJob.

Join DikaJob

Faça seu post no DikaJob