O Globo 

Mauro Schechter, professor titular de infectologia da UFRJ e adjunto de epidemiologia das Universidades de Pittsburgh e Johns Hopkins, nos EUA, conversou para O GLOBO com três figuras proeminentes do universo da vacina: Sir Jeremy Farrar, Peter Piot e Seth Berkley. Os três têm sido interlocutores de Schechter há muitos anos, em especial durante a pandemia no novo coronavírus.

Farrar é o diretor, desde 2013, do Wellcome Trust (maior ONG voltada para o financiamento da saúde e da ciência na Europa). Ele foi professor e diretor na Universidade de Oxford, e identificou a volta da gripe aviária em 2004. Colaborador do Ministério da Saúde da Alemanha entre 2017 e 2019, com a chegada da pandemia se tornou assessor especial do governo britânico para a Covid-19.

O microbiologista belga Peter Piot foi um dos descobridores do vírus do Ebola em 1976. Ele também foi diretor da UNAIDS, da ONU, e ocupou cargos de direção no Imperial College de Londres e na London School of Hygiene & Topical Medicine. Hoje ele é Conselheiro em Saúde para Covid-19 da União Europeia.

E o epidemiologista americano Seth Berkley é CEO da GAVI Alliance (iniciativa da Fundação Bill e Melinda Gates para imunização de crianças em países pobres) e criador e presidente da International AIDS Vaccine Initiative.

Piot lembra que vacinas eficazes por si só não salvam vidas, mas sim a vacinação bem feita. Já Farrar diz que é urgente fazer estudos sobre misturas de vacinas diferentes para enfrentar o vírus. E Berkley ressalta que já há três vacinas contra o vírus altamente eficazes contra a incidência da doença em casos graves: “poucas pessoas teriam ousado esperar isso seis meses atrás”.

Sem favorecimento
Berkley: A Covax (coalizão mundial para garantir vacina às nações mais pobres) está no caminho certo para cumprir seus objetivos. Por meio de acordos com fabricantes, a Gavi, em nome da Covax, já garantiu 1,97 bilhões de doses. A CEPI (Coalizão para Inovações de Preparação para Epidemias) conseguiu um adicional de 1 bilhão de doses através de acordos de parceria de pesquisa e desenvolvimento. Nação mais populosa da América Latina e com valiosas contribuições à saúde pública, o Brasil tem papel importante a desempenhar e esperamos trabalhar com o governo federal para proteger mais a população brasileira.

Farrar: As vacinas em 2021 devem ser disponibilizadas para pessoas de grupo de risco, vulneráveis economicamente e profissionais de saúde. Políticos de todo o mundo falaram este ano eloquentemente sobre este compromisso. Agora, eles e nós devemos entregar as vacinas. Palavras calorosas são maravilhosas. Cumpri-las é o que importa.


Eficácia e infraestrutura
Piot: A Food and Drug Administration (FDA), dos EUA, anunciou que consideraria a aprovação de emergência para vacinas com eficácia de até 50% (assim como a OMS e a Anvisa). Das seis vacinas (Pfizer / BioNTech, Moderna, AstraZeneca / Oxford, Sputnik, Sinovac e Sinopharm) que receberam autorização de uso emergencial ou aprovação total em diferentes países, todas alcançaram pelo menos 60% ou mais de eficácia. Dito isso, até agora as duas vacinas de mRNA (Pfizer e Moderna), parecem oferecer maior proteção. No entanto, uma vacina segura e eficaz por si só não salva vidas, mas a vacinação (bem feita e ampla) com tais vacinas sim.

Farrar: O que importa não é uma vacina nem sua eficácia, mas disponibilizar imunizantes para todos, de forma equitativa e universalmente independente da capacidade de pagamento. Este é um imperativo científico: nenhum de nós estará seguro até que estejamos todos seguros. É também um imperativo moral. O investimento em vacinas, diagnóstico e tratamento é a única saída desta terrível pandemia.

Berkley: A eficácia não é a única consideração. Junto com nossos parceiros na Covax gastamos muito tempo e energia ajudando países a preparar a infraestrutura necessária para terem sucesso na implementação da vacinação, como armazenamento em cadeia de freezers, prazo de validade e, finalmente, vacinas em dose única, muito mais fáceis de usar nas campanhas de vacinação. Também é importante ter dados sobre a adequação da vacina para populações locais. A candidata da Oxford / AstraZeneca, por exemplo, passou por testes no Brasil, na África do Sul e em vários outros locais. Isso forneceu dados incrivelmente valiosos para se analisar a adequação em diferentes regiões e grupos. A notícia encorajadora é que hoje já temos três vacinas que demonstraram ser altamente eficazes contra a incidência da doença em casos graves — poucas pessoas teriam ousado esperar isso seis meses atrás.


Adiar a segunda dose
Piot: Eu entendo as emergências de saúde pública em muitos países, mas a OMS recomenda não se desviar dos esquemas de vacinação comprovados. A vacina da Pfizer/BioNTech foi autorizada pela EMA (Agência Europeia de Medicamentos) e pela FDA com base em um regime de duas doses administradas com 21 dias de intervalo. Qualquer divergência deste esquema de dosagem seria considerada uso off label e exigiria autorização separada. Além disso, os níveis de anticorpos neutralizantes (reação natural do sistema imunológico) foram bastante baixos após a primeira injeção com a vacina de mRNA da Pfizer, mas se tornaram muito significativos após a segunda dose. A situação pode ser bem diferente para vacinas baseadas em adenovírus, como a da AstraZeneca/Oxford, para a qual um intervalo maior entre as injeções pode realmente aumentar a imunogenicidade e a proteção de longo prazo. Aguardo ansiosamente pelos resultados do ensaio da Janssen, que está avaliando a eficácia de uma única injeção. Se funcionar bem, será muito atraente para as campanhas de vacinação em massa.

Farrar: Argumentei no Reino Unido a favor de oferecer ao maior número de pessoas a primeira dose da vacina. Acredito que será melhor para o indivíduo e para a saúde pública vacinar o dobro de pessoas com uma dose do que a metade desse número com duas doses. Mas sim, devemos coletar dados ao fazer isso.

Misturar vacinas
Piot: Não recomendaria tomar doses de vacinas diferentes. Não há absolutamente nenhum dado sobre isso. Mas, dadas as limitações de fornecimento e os desafios logísticos na implantação de vacinas em diferentes países, pode valer investigar a ideia de se usar uma vacina para a primeira dose e outra disponível para a segunda. Um ensaio dessa natureza está em andamento para investigar a segurança e a imunogenicidade da vacina de Oxford em combinação com o imunizante russo Sputnik V. Os resultados desse estudo ajudarão a determinar a segurança e eficácia de tal abordagem.

Farrar: Não há estudos completos sobre esquemas vacinais mistos. Mas eles precisam sim ser feitos. É uma questão de significado global. Nos próximos anos, haverá problemas com o fornecimento de vacinas, muitos não se lembrarão de qual receberam se mais reforços forem necessários. Precisamos entender se a mistura da ordem de imunizantes fornece proteção imunológica contra o Sars-Cov-2, em todas as idades, em todas as comunidades e para proteção prolongada.


Novas cepas
Farrar: Desde o surgimento do Sars-Cov-2, sabemos que ele sofreria mutações. Muitas não conferirão vantagem biológica ou epidemiológica ao vírus, mas algumas sim. Agora sabemos que duas cepas diferentes, identificadas pela primeira vez no Reino Unido e na África do Sul, são mais transmissíveis e se espalham rapidamente. Devemos levá-las muito a sério. Não há evidências de que elas irão escapar da imunidade após a infecção natural ou mesmo após a vacinação. Mas a sul-africana (já registrada no Brasil) parece escapar de alguns dos anticorpos monoclonais usados para o tratamento. Isso é muito sério e um lembrete de que devemos ter humildade em face da evolução viral. Todos os anticorpos monoclonais e vacinas atualmente têm um mesmo alvo, uma proteína do vírus, a proteína spike, o que é um grande risco.

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