Humberto Saccomandi: Epidemia trará freada global sincronizada

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Valor Econômico

Colunista: Humberto Saccomandi

21/02/20 - A economia global terá um segundo ano consecutivo de choque. Depois da guerra comercial de Donald Trump, em 2019, a epidemia que assola a China - e que deverá chegar a outros países- provavelmente colocará o mundo numa nova desaceleração sincronizada. Ou até mesmo, no pior cenário, numa recessão sincronizada. Os mercados vêm reagindo com um misto de cautela e otimismo e parecem esperar uma rápida recuperação pós-epidemia. Uma reversão dessa expectativa pode ter impacto significativo.

Ainda estamos longe de saber a extensão espacial e temporal que esta epidemia terá. Ela pode ficar circunscrita à China e atingir seu pico entre março e abril, o que parece ser o cenário mais positivo. No cenário mais negativo, a epidemia logo se espalharia, afetando eventualmente o mundo todo, num processo que tomaria o ano inteiro. A Organização Mundial da Saúde prevê que uma vacina contra o coronavírus só estará disponível no ano que vem.

Mesmo com essa incerteza, é difícil exagerar a gravidade, tanto médica quanto econômica.

Estamos vendo uma cadeia de eventos sem precedente na história recente. A China, a maior economia industrial do mundo, freou abruptamente. Mais de 60 milhões de chineses estão vivendo sob algum tipo de isolamento, com limitação para sair de casa. Países suspenderam quase todo o transporte de passageiros com a China, onde mais de dois terços dos aviões comerciais estão no chão. A entrada de visitantes no centro financeiro de Hong Kong caiu 99%, de 200 mil para 3 mil por dia. Cidadãos chineses estão proibidos de entrar em muitos países. As cadeias globais de produção estão sendo afetadas, e eventos e feiras, cancelados. A Olimpíada de Tóquio corre risco. É um nível de disrupção global não visto talvez desde a Segunda Guerra Mundial.

Isso é exagero, alarmismo e pânico? Pode ser, mas, se não for contido, que diferença faz? E, apesar da aparente baixa letalidade, o vírus parece ser altamente transmissível. Num navio de cruzeiro ancorado no Japão e que ficou de quarentena por duas semanas (ou seja, um ambiente relativamente controlado), todos os dias surgiram casos novos e ao menos 621 das 3,7 mil pessoas a bordo foram contaminadas.

O mais amplo estudo chinês divulgado até agora coloca a taxa de mortalidade do coronavírus no país em 2,3% dos infectados. É baixa em relação à sars, por exemplo, cuja taxa chegou a 9,6%. Mas, se apenas 1% dos 1,38 bilhão de chineses se contaminar, significaria mais de 310 mil mortes. Isso justifica uma reação de emergência.

A epidemia já está afetando as projeções de crescimento econômico. Levantamento feito pelo Valor indica que em apenas três países do grupo das 20 maiores economias (o G-20) ainda se espera um crescimento significativo em relação a 2019. São eles Turquia, Arábia Saudita (que tiveram um 2019 muito ruim) e Brasil. Todos os demais devem crescer o mesmo ou menos do que no ano passado. E essas projeções estão sendo revistas, para baixo, quase que diariamente. Japão, Alemanha e Itália podem ser os primeiros a entrarem em recessão.

Assim, o cenário para 2020, que já era incerto, mas vinha com um viés positivo por conta da trégua comercial entre EUA e China, virou decididamente negativo. As próximas semanas serão decisivas para indicar se a epidemia atingirá outros países e se tornará uma pandemia.

A China vem fazendo um esforço tremendo para mitigar o impacto econômico da epidemia. O governo já anunciou medidas fiscais e monetárias. Os bancos estatais públicos foram orientados a ampliar o crédito e deverão aguentar uma onda de inadimplência. Eles também estão provavelmente sendo usados para evitar uma queda do mercado de ações do país. Após uma reação inicial errática, Pequim vem reforçando a propaganda, buscando passar uma imagem de melhora na epidemia e de normalização gradual do país. Isso inclui uma forte censura à internet e às redes sociais. Os dados oficiais relativos à epidemia, porém, ainda são vistos com desconfiança no exterior. Teme-se que a crise seja pior do que Pequim admite.

Países asiáticos também estão adotando medidas de gestão de crise, com redução de juros e aumento do gasto público. Em reunião com seus ministros nesta semana, o presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, falou em “emergência”. “Precisamos tomar todas as medidas possíveis para apoiar a economia. A situação atual é mais séria do que imaginávamos”, disse ele.

Os mercados, animados com as medidas de estímulo na China e turbinados com uma liquidez global sem precedentes, parecem ainda pouco conectados com essa emergência. Parecem esperar uma recuperação em V, isto é, com a queda forte seguida por uma imediata recuperação forte. Isso pode ocorrer, mas há vários riscos para esse cenário. Não se sabe ainda quanto vai durar a primeira perna desse V, a da queda. Quanto mais ela se aprofundar, mais improvável será uma recuperação forte. Ou seja, quanto maior for o tombo, mais difícil será retomar o ritmo econômico anterior. O banco de investimentos japonês Nomura já começou a prever um cenário de recuperação em U, isto é, com um período mais longo entre a queda e uma retomada.

Uma mudança nessa expectativa dos mercados pode ter um efeito grave para a economia mundial, com queda de confiança, fuga para ativos mais seguros, pressão sobre o câmbio nos países emergentes, retração de investimentos etc.

O Brasil, em berço esplêndido às vésperas do carnaval, parece alheio a esse terremoto. Enquanto países asiáticos já começam a operar em modo de crise e a União Europeia debate um pacote de gasto fiscal, por aqui o Banco Central nem citou a epidemia como risco imediato na ata de sua última reunião, que sinalizou um fim da queda da taxa de juros que pode se mostrar prematuro. As expectativas de crescimento para este ano estão se deteriorando rapidamente. Podemos ficar fora da provável desaceleração sincronizada do G-20, mas alguém realmente apostaria nisso?

E o governo, em vez de tentar acelerar, neste semestre pré-eleitoral, reformas que poderiam dar alguma proteção extra ao país num momento que se preanuncia difícil, perde tempo e capital político com picuinhas, ofensas tolas do ministro da Economia a funcionários públicos e empregadas domésticas, e ofensas cafajestes do presidente a uma respeitada jornalista.

 

(*) Humberto Saccomandi é editor de Internacional. Escreve mensalmente às sextas-feiras. E-mail: humberto.saccomandi@valor.com.br

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