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PHOTOGRAPH: PAULO SOUSA/GETTY IMAGES

As vacinas podem prevenir os sintomas, mas algumas também podem impedir as pessoas de espalhar a infecção. Isso é crítico e ninguém sabe se as novas vacinas fazem isso.

ADAM ROGERS* - Wired

Em três segunda-feiras seguidas, um trio de vacinas aparentemente seguras e eficientes contra a Covid-19 tomaram o noticiário. No decorrer de um pico sem precedentes da doença na Europa e nos Estados Unidos (no caso deste país, são mais de 250 mil mortes e uma evolução descontrolada da pandemia), essas notícias estão longe de serem más novas.

Disfarçado sob as novidades nada ruins, no entanto, estava uma melhor ainda. A vacina da empresa farmacêutica AstraZeneca, desenvolvida por pesquisadores da Universidade de Oxford e assunto da semana passada, apresentou sinais de uma capacidade particular que, se provar verdadeira, fará a diferença na luta contra a pandemia. Os fabricantes das duas outras vacinas que dominaram manchetes anunciaram evidências que seus medicamentos evitam que pessoas contraiam a doença – em outras palavras, menos indivíduos vacinados exibiram sintomas moderados ou severos e testaram positivo para o quadro. Isso é algo que os imunizantes fazem bem. Mas pesquisadores trabalhando na versão AstraZeneca da vacina disseram também ver sinais de que sua droga reduz a transmissão, diminuindo a chance de uma pessoa levar a doença para outra. Os resultados do laboratório tem lá seus elementos dúbios, claro, mas se o lance da transmissão for fato, é algo importante. Muito importante.

Aqui está o que sabemos (ou o que foi anunciado) até o momento: as primeiras duas vacinas a completar testes de larga escala – uma das farmacêuticas Pfizer e BioNTech e outra da Moderna – são novos tipos de medicamento. Eles usam pedaços de material genético chamados RNA mensageiro – no caso, trata-se da sequência de código que simula uma parte do vírus chama peplômero, proteína que ajuda o SARS-CoV-2 a atacar células humanas. O RNA mensageiro, envolto em uma bolha de gordura, ensina o sistema imunológico a combater ele mesmo o vírus. A versão da Pfizer tem uma eficácia acima de 90%, diz a empresa em comunicado para a imprensa; nota da Moderna aponta eficiência na casa dos 94,5%. Se esses resultados se mantiveram nesse patamar conforme houver mais dados públicos em mãos, significa que estamos falando de um par de vacinas extraordinárias.

O imunizante da AstraZeneca é um pouco mais tradicional, colocando o mesmo gene do peplômero em uma espécie de envelope furtivo chamado vetor – no caso, um adenovírus que geralmente afeta chimpanzés, modificado para ser incapaz de se replicar. Os resultados da companhia – novamente, anunciados via nota para a imprensa, e não através de um estudo revisado por pares da área científica – são um pouco mais confusos. A AstraZeneca está realizando estudos diferentes ao redor do mundo, e como cada um tem metodologias relativamente diferentes, é difícil compará-los. Mas se colocá-los no mesmo balaio, como a AstraZeneca fez, seu regime de duas doses parece ter eficácia em torno de 60% dos casos. Pode não parecer muito promissor, mas ainda está acima do 50% de resultado procurado pela agência reguladora nos Estados Unidos. E no caso de um grupo que acidentalmente recebeu apenas metade da primeira dose antes de ser vacinado com a segunda, a eficácia subiu para 90%. Ninguém sabe o motivo, e agrupar um estudo preciso com outro acidental (reanalisado posteriormente) não é lá boa prática quando o assunto é estatística.

No momento, parafraseando a sabedoria popular, adenovírus dado não se olha os dentes. Os comunicados oficiais da Oxford sobre a vacina da AstraZeneca incluem ainda mais uma descoberta: “Indícios de que o imunizante possa reduzir a transmissão do vírus partindo de uma redução observável no número de infecções assintomáticas”. Um imunologista da Universidade disse ao jornal Nature que alguns voluntários de testes no Reino Unido estavam checando com frequência infecções do vírus, e diferentes taxas de transmissão observadas entre grupos que receberam a vacina e aqueles que tomaram placebos sugerem que o medicamento também estaria bloqueando a disseminação da doença. Pesquisadores de Oxford também falaram a jornalistas no último dia 23 que o grupo vacinado no Reino Unido apresentou menos infecções assintomáticas, o que significa menor chance de passar o vírus para frente.

De novo, dados não publicados, sem detalhes, não analisados por terceiros – ciência feita por comunicados oficiais. O que não é bom. Mas é notícia das grandes se for verdade. Aquelas pessoas infectadas pelo vírus mas que não apresentam sintomas – os transmissores assintomáticos – parecem ser a razão da doença ser tão… pandêmica. Só não se sabe ainda qual o real tamanho dessa responsabilidade.

Muitos outros vírus respiratórios combinam sintoma e transmissão – às vezes os próprios sinais da doença, como tosse e espirro, são as maneiras pelas quais o vírus vai de uma pessoa a outra. O tempo entre infecção e sintomas, chamado de período de incubação, não dura muito. “Sabemos que, com a gripe, esse período é relativamente curto, e o paciente pode transmitir a doença em um dia e pouco”, diz Arnold Monto, epidemiologista da Universidade de Michigan e membro do comitê consultivo sobre vacinas e produtos biológicos relacionados da agência reguladora dos Estados Unidos (FDA, na sigla em inglês), que ajuda a tomar decisões na aprovação de novos imunizantes. “Podemos infectar um furão com o vírus da gripe e ele vai adoecer, mas se ele não estiver tossindo ou fazendo o que furões fazem quando estão sintomáticos, também não há transmissão”.

A crença de que isso seja verdade no caso da Covid-19 deu pano para muito do nosso ‘cosplay’ protetor acerca da pandemia – as checagens de temperaturas e observação de sintomas. “Muito do que fizemos lá no começo era baseado no fato de que, com SARS tradicionais, não havia lá muita transmissão de pacientes assintomáticos”, diz Monto. “Quando o assunto são doenças respiratórias, quem apresenta os sintomas tende a infectar mais do que aqueles sem sinais do quadro. Acreditamos que fosse verdade também com a Covid, mas está ficando cada vez mais claro que indivíduos assintomáticos também estão envolvidos na proliferação do vírus”, conclui.

O problema é o seguinte: uma vacina contra Covid-19 que só previna a doença – ou seja, os sintomas – pode não agir contra a infecção do vírus ou sua transmissão. No pior cenário, uma pessoa vacinada pode muito bem ser um transmissor assintomático. O que seria ruim. Em linhas gerais, os jovens adquirem o vírus em maior número, mas são os mais velhos que representam a principal fatia de mortes decorrentes dele. Status socioeconômico e etnia também têm impacto na taxa de mortalidade. Algumas pessoas apresentam sintomas relativamente leves, outras apresentam sinais que persistem por meses a fio. E, talvez mais importante, uma vacina é a única forma de alcançar imunidade de rebanho sem um derramamento de sangue. Por mais politizado que o termo tenha se tornado, esse objetivo é essencialmente a soma de proteção direta -ser vacinado, por exemplo – e a indireta, aquela que vem das pessoas ao redor deixando de transmitir o vírus, seja por elas já terem passado pela doença, seja por serem imunizadas contra ela. Se indivíduos vacinados ainda configurarem transmissores assintomáticos, isso significa um enfraquecimento da proteção indireta no rebanho.


Esse dilema importa pois não há vacina o bastante para todos – ou pelo menos, não por enquanto. Alguns grupos vão ser imunizados primeiro. Em uma situação ideal, as características de um imunizante disponível determinariam quem recebe antes. Uma vacina que apenas previna a doença poderia chegar primeiro aos idosos, população emque sintomas severos têm mais probabilidade de levar a morte. Aquela que evita infecções e transmissão, por outro lado, chegaria a trabalhadores essenciais e profissionais da saúde no front da pandemia. “Parte de nossa preocupação é que queremos ser assertivos na primeira fase de distribuição, garantir que estamos mirando o impacto da vacina da melhor forma possível”, diz Grace Lee, professora de pediatria da Faculdade de Medicina de Stanford e membro do comitê consultivo sobre práticas de imunização do Centro de Controle de Doenças estadunidense (CDC, na sigla em inglês). “Se a única coisa que o imunizante faz é prevenir quadros severos, você quer olhar para a população com esses quadros e aplicá-lo apenas entre eles, em nenhum outro lugar”, comenta.

A situação descrita por Lee é certamente improvável. As vacinas devem ter algum efeito também na transmissão. Acontece que ninguém sabe no momento o impacto desse efeito, ou qual vacina é melhor, e para quem – porque até o momento apenas a AstraZeneca tem o menor sinal de dados que ajudem a entender o problema.

(A qualidade desses dados? Bom, sobre isso: Ann Falsey, da Escola de Medicina da Universidade de Rochester e líder de parte dos testes da AstraZeneca nos Estados Unidos, me contou por e-mail: “O comunicado de Oxford sinaliza algumas informações a respeito de transmissão, mas não tenho acesso a esses dados. Não há muito que possa dizer”. Algumas horas depois da publicação original desta matéria, ela me mandou uma nova mensagem dizendo que seu estudo e o de Oxford “são financiados e gerenciados separadamente”. Porta-vozes da AstraZeneca não responderam à matéria. Nem ninguém da Moderna. Jerica Pitts, que representa a Pfizer, chegou a nos atender, mas não disse nada muito novo. “Nos próximos meses, vamos realizar testes com amostras de sangue dos voluntários, procurando anticorpos que reconheçam a porção do vírus que não faz parte da vacina. Se menos participantes do grupo vacinado desenvolverem esses anticorpos em comparação com aqueles que tomaram placebo, teremos evidências para dizer que a vacina pode prevenir a doença e também a transmissão”, escreve Pitts em e-mail, “mas ainda não temos esses dados”)

Diferentes níveis de defesa contra a transmissão do vírus vão ditar a capacidade de uma vacina em conter a pandemia. Parte do trabalho no comitê do qual Lee faz parte envolve a construção de modelos de contágio. Um deles imagina um cenário no qual o imunizante impede 95% da transmissão, comparando com outro que não traz qualquer efeito nesse sentido. Aplicada em adultos do grupo de risco e pessoas acima dos 65 durante um aumento no contágio, a vacina que bloqueia a infecção (e, consequentemente, a transmissão) pode evitar o dobro de mortes do que aquela que impede a doença no organismo, mas permite sua proliferação.

É afinal um modelo; na vida real, a diferença entre medicamentos não será tão extrema já que todas as vacinas muito provavelmente terão algum efeito na transmissão do vírus. A verdade é que ninguém entende ao certo com o contágio assintomático ocorre. O fenômeno pode estar relacionado a partículas respiratórias jogadas no ar durante uma conversa ou na respiração, então uma vacina que reduza sintomas pode diminuir esses riscos. Ou talvez um corte na ‘carga viral’ de uma pessoa – a quantidade de vírus que carrega – também afeta sua capacidade de transmissão. Quem sabe uma vacina capaz de oferecer imunidade da mucosa (protegendo os líquidos do nariz e pulmões) possa diminuir quanto vírus um sujeito lança ao mundo. “O que diria em termos gerais seria: seria perfeito podermos eliminar o contágio acabando com transmissores assintomáticos”, diz Lee. “No caso disso não ser possível, seria ótimo reduzir a carga viral, que por extensão poderia diminuir sua transmissibilidade.”

Esta não seria a primeira vez que vacinas diferentes apresentam efeitos distintos. Alguns pesquisadores trabalham com a hipótese de que um recente surto de coqueluche – uma infecção bacteriológica respiratória – se deve à adoção de um novo imunizante que não ataca a transmissão assintomática (esta não é a única possibilidade plausível, mas vamos seguir o raciocínio por mais um segundo). Um modelo construído por Sam Scarpino, diretor de um laboratório epidêmico da Northeastern University, sugere que um retorno à nova fórmula levaria a uma queda significante em infecções e mortes. Dada a velocidade e seriedade da pandemia da Covid-19, a importância de um efeito desses é ainda maior. “Especialmente em um país como os EUA, onde há muito receio com a vacina combinada à severidade da doença especialmente em idosos, bloquear a transmissão é fundamental”, diz Scarpino. “Não temos qualquer motivo para crer que as vacinas da Moderna e da Pfizer sejam incapazes de realizar esse bloqueio. É só que isso não está sendo medido de fato – e vai ser difícil entender o problema até começarmos a vacinação em massa e/ou obtermos mais informações detalhadas nos locais de estudo, com epidemiologistas correndo atrás dos efeitos da imunidade de rebanho.”

Sendo claro, a falta de dados sobre transmissão tem motivos. Lá para metade do ano, quando a pandemia parecia ter alcançado seu pico e hospitais estavam cheios de pacientes entubados, a FDA informou a fabricantes de vacinas e laboratórios o que procurava. Os principais problemas à época eram doença severa e segurança, já que até então pesquisadores estavam preocupados com a possibilidade de um raro efeito da infecção viral: alterações no sistema imunológico geradas por imunizantes poderiam acarretar maiores problemas mais tarde. E lembre-se da falta de testes para a Covid: esse problema também se aplicou a voluntários de testes das vacinas nos EUA, o que tornou difícil manter o mesmo nível de checagem que o braço inglês da AstraZeneca aparentemente foi capaz de fazer.

Tudo isso para dizer que, fora dos sinais vagos da AstraZeneca, ninguém tem dados sobre transmissão. As milhões de pessoas que podem começar a ser vacinadas já a partir de dezembro serão também uma espécie de fase quatro dos testes, uma triagem que dará a cientistas a chance de observar o impacto da vacina sobre o contágio no mundo real. “Acho que vamos precisar dessa informação no decorrer do tempo”, diz Lee. “Mas sinto que no cenário atual dessa pandemia, no contexto que estamos vivendo agora, fazer da vacina um componente chave da proteção será algo importante.”

Seria melhor já ter a informação em mãos, mas não é um problema catastrófico. “Poderíamos refinar nossas ferramentas e otimizar a coleta de dados? Sim, completamente. Teremos essas informações? Não. Vamos parar e esperar por elas? Negativo”, garante Lee. “É óbvio que, a esta altura, os benefícios de proteger parte da população superam o ônus de não ter os dados perfeitos”. A boa notícia sendo de certa forma ruim não tira sua utilidade.

by GQ Brasil

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