Covid avança no interior e atinge cidades de menor porte

Valor Econômico
Jornalista: Anaïs Fernandes


04/05/20 - Com praticamente todas as cidades acima de 100 mil habitantes no Brasil registrando casos de covid-19, a propagação do vírus caminha para municípios menores, marcados por sistemas de saúde frágeis, e põe em xeque a flexibilização de quarentenas.
Em pouco mais de um mês (26 de março a 2 de maio), o número de cidades com até 50 mil habitantes que tinham ao menos um caso da doença passou de 63 (1,3% do total de municípios desse porte) para 1.597 (33%). Os dados foram levantados pelo Valor junto às secretarias estaduais de saúde. Só entre cidades com 20 mil a 50 mil habitantes, mais da metade (65%) tem casos registrados, e mais de um terço (37%) dos municípios com 10 mil a 20 mil apresenta ocorrências.

Dos cerca de 5.570 municípios brasileiros, 2.030 (40%) tinham pelo menos uma ocorrência da doença. Até ontem, o Brasil registrava 101,2 mil casos confirmados de covid-19, com 7.025 óbitos.

A covid-19 vinha apresentando um modelo de difusão hierárquico, ou seja, chegando mais rápido a cidades maiores, mesmo que elas não sejam tão próximas, explica Raul Borges Guimarães, do Laboratório de Biogeografia e Geografia da Saúde da Unesp de Presidente Prudente. Essa fase está acabando e avança a propagação comunitária, ele diz.

“É uma difusão mais horizontal, por continuidade, entre cidades vizinhas. A propagação até agora teve forte relação com a rede urbana, mas municípios rurais começam a ser atingidos.” Em relatório de 17 de abril, o Núcleo de Métodos Analíticos para Vigilância em Epidemiologia (Mave), que reúne pesquisadores do Programa de Computação Científica (Procc/Fiocruz) e da Escola de Matemática Aplicada (EMAp/FGV), estima que os Estados com maior chance de interiorização da epidemia são Pará, Maranhão, Bahia, Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. No Amazonas, Rio de Janeiro, Goiás e São Paulo o movimento já está em curso.

A partir de outra métrica - casos de covid-19 a cada 100 mil habitantes, por porte de cidade -, Gilvan Guedes, professor do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar), da UFMG, observa que o ritmo de avanço da doença está mais lento nas cidades menores, o que em parte pode embutir maior subnotificação nesses locais, mas também traz uma janela de oportunidade importante para os gestores.

Por outro lado, a letalidade se mostra mais elevada nesses municípios. Segundo Guedes, a taxa de letalidade para cidades com menos de 20 mil habitantes estava em 0,61% em 28 de abril, enquanto municípios com 100 mil a 500 mil pessoas registravam 0,10% e, acima de 1 milhão de habitantes, 0,08%. “É um sinal de alerta, porque municípios menores, pela própria lógica de organização da oferta de leitos, podem ter desafios adicionais.” O avanço da doença para cidades pequenas escancara a ausência de leitos de UTI nesses municípios. De acordo com o levantamento do Valor, em 26 de março, 75% das cidades de todos os portes com registro da doença apresentavam leitos de UTI disponíveis no SUS. Em 2 de maio, menos da metade (39%) tinha leitos do tipo.

Guedes diz que o “desenho regionalizado” dos serviços de saúde, sobretudo de média e alta complexidade, faz sentido em um contexto normal porque “reflete a presença de economias de escala”. Em meio a uma pandemia, porém, pode ser repensado.

“Municípios pequenos precisam se planejar para equacionar isso, ampliando leitos quando possível e melhorando a capacidade de transporte daqueles que precisarem de cuidados em outras cidades”, afirma.

Além de enfrentar “vazios especiais” no acesso à saúde, muitas cidades pequenas têm concentração maior de grupos de risco, como idosos, diz Guimarães. “Poderíamos ter cenas parecidas com as de vilas italianas, em que 30%, metade de uma população foi dizimada.” A situação de municípios sem registro de covid-19 é “particularmente preocupante”, segundo Guedes, porque “gera falsa sensação de segurança nesses locais”.

“A verdade é que não sabemos realmente onde os casos estão, devido à enorme falta de testes e às diferenças regionais na capacidade de processamento dos resultados.” Por tudo isso, especialistas afirmam que flexibilizar medidas de isolamento mesmo em municípios pequenos, com poucos ou nenhum caso, parece precoce e equivocado para o momento.

“Estamos em período de aceleração de casos e óbitos. Se isso ocorre em uma cidade com oferta limitada de saúde, de forma concentrada no tempo, é receita para o desastre”, diz Guedes. Guimarães concorda. “Não funciona. Há cidadezinhas que não vivem sem contato com o centro regional, você vai estimular essa mobilidade e intensificar o transporte do vírus.”

Na avaliação de Daniel Villela, coordenador do Procc/Fiocruz, enquanto não houver protocolos para testagem e atendimento das pessoas também em cidade menores, não é possível pensar em flexibilização. “Descobrimos que em outros lugares já havia transmissão sustentada e não se sabia, há subnotificação. É preciso primeiro resolver esses assuntos antes de pensar em relaxar medidas. Se as cidades ainda não têm casos, devem aproveitar o tempo para se preparar”, diz.

Essa é a recomendação do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). “Orientamos que cada um, independentemente do seu tamanho, organize minimamente sua rede de saúde e também trabalhe no processo de regionalização a que estiver vinculado”, afirma Wilames Freire, presidente do conselho.

“Em um país como o Brasil, de enorme heterogeneidade de acesso à saúde e dimensões continentais, a interiorização da pandemia será um desafio sem precedentes para os governos locais”, diz Guedes, do Cedeplar.

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