– Quase todos dependem integralmente dos pagamentos que vêm da Alemanha. Nossos companheiros ou estão aposentados ou largaram tudo para nos ajudar nas tarefas diárias. Sem essa pensão, não temos como viver de maneira digna – garante Luis Carlos Silva dos Santos, 58 anos, morador de Porto Alegre que desde 1976 recebe a indenização.
O pagamento está ameaçado, conforme correspondência recebida pelos beneficiados. Depois que o comunicado enviado em alemão chegou à casa da também vítima Maria da Graça Moraes dos Santos, 57 anos, e ela identificou seu conteúdo, logo informou aos amigos que são também vítimas do uso do medicamento durante a gestação de suas mães. Nos dias que se sucederam, eles foram vendo chegar a carta em suas casas. O prazo informado para uma manifestação dava a todos menos de duas semanas para preparar a documentação em sua defesa e enviar uma resposta à fundação – em alemão.
– Foi o maior susto das nossas vidas. Eu me apavorei. Procurei falar com conhecidos nossos na Alemanha, inclusive um conselheiro dessa fundação, para entender se era verdade. E, infelizmente, era – lamenta Maria da Graça.
Para o advogado Christian Hageböck, que representa 24 vítimas da talidomida no Brasil – a maioria delas em Porto Alegre –, a fundação comete uma série de injustiças ao cobrar que essas pessoas se manifestem: enviou a carta somente em alemão, contrariando a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2006 e incorporada à legislação brasileira em 2008; exime de responsabilidade a Grünenthal ao afirmar que o medicamento produzido pelo Instituto Pinheiros não tem relação com a farmacêutica alemã; afirma desconhecer documentos que comprovem um contrato firmado entre Grünenthal e Instituto Pinheiros.
– Não há qualquer decisão judicial favorável a isso, a fundação decidiu, sozinha, cancelar o pagamento. Querem deixar essas pessoas completamente na mão, sem eira nem beira. Elas vão viver do quê? – questiona o advogado.
Paula Vargas, 57 anos, é uma pediatra reconhecida no Brasil. Especializada em endocrinologia pediátrica, realiza diagnósticos pré-natal que ajudam as famílias a entender as condições de saúde da mãe e do bebê. Paula é, também, uma vítima da talidomida: nos estágios iniciais da gravidez, sua mãe tomou o sedativo divulgado como quase “milagroso” entre o final da década de 1950 e o início dos anos 1960. Bastaram três comprimidos para os efeitos adversos marcarem a vida da hoje médica para sempre.
Paula VargasAndré Ávila / Agencia RBS
Quando Paula tinha 12 anos, sua mãe recebeu uma correspondência da Alemanha reconhecendo a menina como vítima da talidomida e garantindo a ela uma pensão mensal vitalícia. No final de outubro, a carta recebida teve efeito contrário.
– Fui avaliada por médicos da própria fundação quando tive a autorização para receber essa pensão. Conto com isso há muito tempo, e esperava contar até o fim. E, agora, surge isso. Mas estamos nos mobilizando, e o próprio Parlamento alemão já está questionando o Ministério da Família sobre essa correspondência, o que pode ser levado inclusive para o Parlamento Europeu, porque afeta outros países – explica a médica.
Depois de se informar sobre o conteúdo da carta em que a fundação cobrava manifestação dos beneficiários, se quisessem manter a pensão, Paula entendeu que não era preciso envolver advogados no caso. Mantendo contato periódico com a instituição e com outras vítimas no Brasil e no Exterior, ela interpreta a correspondência como uma espécie de consulta pública.
– É processo administrativo, ainda não judicial. Eles (a Fundação Contergan) estão chamando de “audição”: lançando uma ideia, uma proposta, que quem quiser pode contestar. O problema é que muitas pessoas não perceberam o conteúdo da carta, e assim podem perder esse pagamento, caso não contestem. Quem não se manifestar pode sofrer com um corte imediato – compreende a médica.
“Uma ameaça existencial”
Não são todas as vítimas da talidomida que conseguiram se formar, exercer uma profissão, sustentar-se sozinhas. Muitos, com dificuldades para se locomover, comer, se vestir e, portanto, para exercer qualquer tipo de cargo profissional, dependem desse benefício como fonte de renda. A influente revista semanal alemã Der Spiegel, que tem dedicado reportagens sobre o tema em suas páginas, destacou que, “para muitas vítimas do Brasil, esse precedente é uma ameaça existencial”.
O engenheiro mecânico Luis Carlos Silva dos Santos, que se formou mas jamais conseguiu exercer a profissão, resume assim a sua indignação:
– Sempre pensamos que, se fôssemos perder algum benefício, seria o do INSS, não da Alemanha.
Aos comentários de que as vítimas não necessitam desse pagamento para viver, ele responde:
– Meu corpo é minha prisão. Ele limita todas as minhas atividades. Eu trocaria todo o valor que recebo para ter um corpo que me permitisse trabalhar, fazer qualquer coisa.
Também a artista plástica Tina Felice ressalta a importância da indenização. Além de ter os braços mais curtos que o normal, seu cotovelo direito é atrofiado, impedindo que o membro se estique. Falta-lhe um dos polegares, e o outro é malformado, prejudicando a função de pinça executada pelos dedos, fundamental para atividades manuais.
As limitações físicas nunca impediram Tina de encontrar maneiras de driblar o problema – mas as limitações financeiras podem dificultar ainda mais a sua vida. Além de artista plástica, Tina é formada em Direito, área em que, pensou ela, o trabalho lhe exigiria menos fisicamente. Apaixonada pelas artes, no entanto, ela decidiu se dedicar à escultura e à pintura. Em seu ateliê, diversas obras, telas, objetos já concluídos, inacabados ou em desenvolvimento se somam ao mobiliário da casa.
– Essa pensão, que imaginávamos vitalícia, é muito importante. Desde que saí da casa dos meus pais para ganhar a vida sozinha, foi esse pagamento que me ajudou a ter uma vida mais normal. Sem isso, tudo ficaria ainda mais difícil – define Tina.
O mesmo pensa a dona de casa Rosvita Ely. Natural de Blumenau (SC), ela hoje mora em São Leopoldo com o marido, que a ajuda em tudo. No início da vida adulta, começou a cursar Arquitetura, mas dificuldades financeiras a impediram de concluir o curso na área pela qual é apaixonada. Em 1982, começou a receber a indenização mensal da Fundação Contergan para Pessoas com Deficiência, que tem permitido uma qualidade de vida maior. A expectativa de perder o benefício a apavora:
– Desde que recebemos essa carta, temos vivido um grande pesadelo.
Três gerações de vítimas
Acompanhe como, ao longo dos anos, a talidomida se tornou um problema com efeitos globais sentidos há mais de 60 anos:
- 1954 – Um laboratório da Alemanha Ocidental desenvolve a droga para controlar ansiedade, insônia e náuseas.
- 1957 – A medicação passa a ser comercializada em 146 países.
- 1960 – Começam a ser descobertos os efeitos colaterais da administração da substância a gestantes: nos três primeiros meses de gestação, a talidomida interfere fortemente na formação do feto.
- 1961 – O sedativo Contergan é retirado do mercado depois de serem divulgadas suspeitas de que causava deformações em fetos quando ingerido por gestantes. Iniciam-se os processos indenizatórios no mundo todo. No Brasil, a droga ainda não é retirada de circulação.
- 1965 – O israelense Jacobo Sheskin descobre efeitos benéficos da talidomida para a hanseníase. Com isso, o produto volta a ser comercializado. No Brasil, sai de circulação.
- 1966 – A droga é adotada contra a hanseníase. Surge a segunda geração de vítimas.
- 1967 – Tem início, contra a Grünenthal, o processo da talidomida na Alemanha.
- 1999 e 2000 – O uso é diversificado, estendendo-se a casos de lúpus e aids. Surge a terceira geração de portadores. Mesmo com todos os cuidados, casos de automedicação, engano no consumo e prescrição errada resultaram no nascimento de cinco crianças com a síndrome nos últimos anos no Brasil.
Fonte: Associação Brasileira dos Portadores da Síndrome da Talidomida e Deutsche Welle
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