Plasma abre possibilidades

Correio Braziliense 
Jornalista: Jéssica Cardoso


Em junho do ano passado, teve início no Distrito Federal um estudo sobre a eficácia do uso de plasma sanguíneo como forma de tratamento contra a covid-19. O método consiste na transferência do componente coletado de pessoas que tiveram a doença e se recuperaram para transferir a pacientes que estão infectados pelo novo coronavírus. A iniciativa é promovida pela Fundação Hemocentro de Brasília, em parceria com a Secretaria de Saúde (SES-DF) e a Universidade de Brasília (UnB).

Até agora, 34 pessoas receberam o plasma de participantes da pesquisa, e cerca de 400 pessoas se voluntariam para doar sangue. Ontem, em entrevista à jornalista Carmem Souza, para o programa CB.Saúde — parceria do Correio com a TV Brasília —, o professor de medicina da UnB André Nicola explicou como a técnica funciona. O médico abordou as vantagens e desvantagens desse método e chamou a atenção para que a população evite o uso de medicamentos que não são comprovadamente eficazes.

Qual é a participação do Distrito Federal nessa pesquisa? E dos países envolvidos?
Há diversos estudos acontecendo no mundo. Existe a possibilidade de o plasma funcionar, mas não sabemos ainda. Começamos um ensaio clínico no DF com o registro de cerca de 400 voluntários e recrutamos 34 pessoas para receber o plasma. Em paralelo, há vários outros estudos no mundo. Nós nos juntamos a uma colaboração internacional, com outras nove pesquisas — dos Estados Unidos, da Europa e da Índia —, para unir os dados de todo mundo. Quando conseguimos avaliar um número maior de pacientes, conseguimos respostas mais rápidas. Em Brasília, temos 34, mas essa colaboração mundial tem 1,8 mil pessoas. Então, a ideia é conseguir respostas sobre a eficácia do plasma de convalescentes mais rápido.


Os 34 participantes do DF estão sob acompanhamento? E o senhor chegou a conclusões específicas para esse grupo sobre a evolução da doença, por exemplo?
Os 34 receberam o plasma e terminaram a terapia. Nós gostaríamos muito de ter as conclusões, mas não conseguimos ainda, por não termos um número de pessoas grande o suficiente para poder chegar a alguma conclusão. É muito perigoso tentarmos usar a observação que fazemos no dia a dia para tirar conclusões. Os pesquisadores são seres humanos, e as pessoas gostariam muito que alguma coisa funcionasse. (Mas) não podemos tirar conclusões antes de ter um número grande o suficiente de pessoas para poder responder as perguntas, por mais que todos estejam ansiosos.


Em relação aos outros estudos de mesma abordagem, a pesquisa de vocês dialoga com os resultados divulgados?
O estudo da Argentina, por exemplo, foi bastante interessante, mas ele é um pouco diferente do nosso. Eles fizeram o estudo com pessoas idosas com covid-19 bem no início da doença, e todos (os pacientes) foram tratados nos primeiros três dias depois do diagnóstico. Nós pegamos pessoas que estão internadas. O estudo argentino mostrou que o plasma reduz em mais de 50% a chance de a pessoa precisar ir para um hospital, ou seja, de desenvolver a forma mais grave da doença. Por outro lado, há estudos de outros países com pacientes internados em UTI (unidade de terapia intensiva), por exemplo, mostrando que, nessas pessoas, o plasma de convalescentes não faz nenhuma diferença no tratamento. Então, as pesquisas estão em andamento, mas o que parece surgir é que o plasma possivelmente funciona em pessoas no começo da doença, na fase em que o vírus está crescendo, mas ainda não gerou uma inflamação grande. Já nas fases finais, quando a pessoa tem uma pneumonia ou uma inflamação muito intensa, o plasma de convalescentes parece não funcionar.

Essa é uma abordagem cara? Quais são as vantagens e desvantagens do uso do plasma caso a eficácia seja comprovada?
O plasma de convalescentes tem uma série de vantagens. O preço é razoavelmente barato, porque você precisa fazer o procedimento de coleta, mas não precisa comprar o plasma nem pagar royalties de patente para nenhuma empresa. Uma segunda vantagem é que bancos de sangue com capacidade de coletar plasma de convalescentes estão disponíveis em diversas cidades do Brasil e em vários locais do mundo. Você não depende de uma empresa que vai exportar ou não de acordo com problemas geopolíticos. Isso faz com que essa terapêutica esteja disponível no momento que precisar. Não é preciso esperar muito tempo para produzir ou testar.


Há alguma desvantagem?
Nós temos um limite de produção, porque dependemos de pessoas que tenham a doença para doação do plasma. Você não consegue fazer milhões de doses como faria de uma droga. Então, o plasma de convalescentes, se funcionar de fato, é uma terapia que funciona como um tampão até o momento em que drogas mais eficazes chegarem ao mercado. (Com ele,) você consegue cuidar das pessoas no primeiro momento antes de aparecerem tratamentos mais eficazes.


Podemos falar em tratamento precoce contra a covid-19?
Esse é um assunto superimportante para doenças infecciosas ou câncer. Faz todo o sentido a gente tratar a doença no começo, antes que ela piore, e a covid-19 tem duas fases. A primeira, em que o vírus está crescendo, se multiplicando e causando dano, e uma segunda, em que o dano vem de uma resposta muito intensa do nosso sistema imune, nosso próprio corpo, destruindo pulmão, coração e rins. Faz todo sentido pensarmos em tratar a doença nessa primeira etapa para controlar o vírus antes de ele chegar à segunda etapa. É muito interessante isso, mas o fato é que não temos, neste momento, nenhuma droga ou tratamento (precoce) que, comprovadamente, funcione para controlar o crescimento do vírus na primeira etapa.

Então, os kits recomendados por autoridades que algumas pessoas procuram em postos de saúde não têm eficácia?
Eles não têm eficácia comprovada. Eu gostaria muito — provavelmente como qualquer profissional de saúde — que existisse uma droga que funcionasse. Mas, infelizmente, ainda não temos nenhuma droga que comprovadamente funcione para tratar a doença na primeira etapa.


Uma pesquisa da Universidade de Liverpool, na Inglaterra, mostrou que a ivermectina pode ser uma opção de abordagem ao reduzir o risco de morte por covid-19 em até 75%. O senhor poderia comentar sobre isso?
Ainda não vi os detalhes dessa pesquisa, mas ela parece bastante interessante. Como pessoa que vive no meio dessa pandemia e tem medo da doença, eu gostaria muito que essa droga realmente funcionasse. Mas, até o momento, o conjunto das pesquisas científicas existentes não comprova a eficácia desses tratamentos. Raramente fazemos um tratamento com base em um único trabalho. Os cientistas fazem um trabalho, depois um conjunto de outros cientistas junta tudo e gera recomendações. Até o momento, a Sociedade Brasileira de Infectologia, a Sociedade Brasileira de Pneumologia, a Sociedade Americana de Infectologia, a Organização Mundial da Saúde e o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (dos Estados Unidos) não indicam ivermectina como tratamento contra a doença (covid-19).


Então, não é para as pessoas iremà farmácia comprar o remédio por causa do resultado dessa pesquisa?
Uma pessoa ir à farmácia e se automedicar é uma coisa perigosa que não deve ser feita. Os profissionais de saúde e a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) precisam avaliar essas informações (do estudo) para chegar a recomendações cientificamente válidas para o tratamento.

Assim que surgiu a pandemia, as pessoas tinham a expectativa de que tratamentos surgiriam antes da vacina, mas foi o contrário. Por que isso ocorreu?
O vírus é um organismo bem pequeno e vive dentro de nossas células (quando ocorre uma infecção). A maior parte das ferramentas que ele usa para se multiplicar e crescer é nossa. Então, é muito difícil fazer tratamento contra um vírus porque, se você faz um tratamento que mate o vírus, você pode acabar matando a pessoa. Fazer terapias contra vírus é um desafio muito grande. Algumas que existem no mercado demoraram 10, 15, 20 anos para serem feitas. As vacinas poderiam ter demorado muito também. Mas que bom que elas funcionaram. Foram iniciados mais de 200 estudos e, menos de um ano depois, temos algumas no mercado. Isso é fantástico.


De alguma forma, esse avanço histórico no desenvolvimento das vacinas pode ajudar no avanço dos tratamentos?
Imagino que sim, porque, na hora em que vemos que uma vacina funciona e que o sistema de defesa (do organismo) consegue prevenir a doença, podemos criar novos tratamentos com base nesse sistema imune. É o exemplo de dois fármacos que estão em uso emergencial nos Estados Unidos e são anticorpos monoclonais contra o vírus. Um deles, inclusive, foi usado para tratar o então presidente dos EUA, Donald Trump, quando ele teve covid-19.


Sobre a vacinação, estas últimas semanas são importantes para o enfrentamento à pandemia?
Certamente. As vacinas são uma ferramenta absurdamente importante em termos de doenças infecciosas. São uma das maiores revoluções da história da medicina. Elas já salvaram a vida de dezenas de milhões de pessoas. Ter vacinas que são seguras e eficazes contra a covid-19 é importantíssimo para controlar a pandemia e, em algum momento, conseguir sair dessa situação terrível em que estamos no mundo inteiro.

Mesmo com o início da vacinação, o Instituto Butantan disse, esta semana, que o Brasil ainda vai enfrentar os piores momentos da pandemia. Qual é a avaliação do senhor?
Não sou especialista em epidemiologia, mas tudo que tenho lido e acompanhado sobre isso segue que, sim, o pior da pandemia está por vir. Não só o Butantan falou isso, mas, nos Estados Unidos, pesquisadores também mostraram. De fato, sofremos bastante, mas, infelizmente, falta muita coisa para conseguirmos sair da situação difícil em que estamos.

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