SONHO OU PESADELO

Revista Época 

Jornalista: Constança Tatsch

O publicitário Adan Smith, de 33 anos, viu seu problema de insônia se agravar quando a pandemia do novo coronavírus sacudiu sua vida. Natural de São Paulo, mas morando em Lisboa, Portugal, desde 2018, em um ano ele perdeu quase todos os clientes de sua agência de publicidade, viu os vínculos sociais desaparecerem à medida que as restrições de circulação aumentaram e deixou de viajar, um de seus hobbies.

Da janela de seu apartamento em Odivelas, área metropolitana da capital portuguesa, as noites se transformaram em dias. O sono vinha quase por exaustão, muitas vezes quando o sol já havia nascido. Os problemas para dormir não eram inéditos na vida do publicitário. Desde a adolescência, sempre enfrentou crises de insônia. Nesses casos, recorria aos tradicionais remédios de tarja preta como Rivotril, clonazepam e diazepam. Ao perceber que havia certa dependência, decidiu trocar os medicamentos pela melatonina, que considera “mais natural”. Chegou à substância por intermédio de amigos e começou com uma mistura de melatonina e ervas calmantes. Nesse processo todo, não ouviu um médico. Vai na tentativa e erro.
Uma pesquisa inédita feita pelo Instituto do Sono com 1.665 pessoas revelou que 55,1% alegaram piora no sono durante a pandemia. A principal queixa é a dificuldade para dormir (66,8%), mas houve aumento em diversos tipos de obstáculos para uma noite revigorante. Os relatos de problemas ocorrendo pelo menos uma vez por semana aumentaram. Entre os principais deles estão a falta de disposição ou entusiasmo, recorrência de pesadelos, demora de mais de 30 minutos para conseguir pegar no sono e acordar no meio da noite ou muito cedo. Para os entrevistados, as causas estão relacionadas à pandemia mesmo: “Mais preocupações devido à situação” (75,1%), “mais tempo de telas (celular, computador, TV)” (64%) e “mais tempo dentro de casa” (54,1%).
Já o estudo Relato de tristeza/depressão, nervosismo/ansiedade e problemas de sono na população adulta brasileira durante a pandemia de Covid-19, com 45.161 pessoas, indica que 43,5% relataram início de problemas de sono e 48% problema de sono preexistente agravado. Participaram pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade de São Paulo (USP), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), e Universidade Federal de Sergipe (UFS). “A ansiedade relacionada a uma situação atípica, o medo de se infectar, a falta de oportunidade da prática de atividade física, a irregularidade de rotina e, por fim, a alimentação inadequada foram as principais causas do aumento de transtornos de sono em minha prática clínica. Quem já era predisposto desenvolveu um distúrbio, e quem não era foi premiado com algum em certas situações”, afirmou o psiquiatra e médico do sono Caio Bonadio, criador da plataforma digital Caio no Sono.
A melatonina é produzida pelos organismos de plantas e animais. É conhecida como o hormônio do sono, mas é mais do que isso: é uma das principais responsáveis pelo ciclo biológico de quase todos os seres vivos, usada no ritmo circadiano que regula a atividade física, química, fisiólogica e psicológica do corpo humano. Pode ser encontrada em alguns alimentos, como leite e cereja. No entanto, a quantidade que poderia ser absorvida pela via alimentar é muito pequena para ter resultado terapêutico.
A substância induz todas as modificações necessárias para o repouso, como sono, jejum e redução da atividade cardiovascular, da pressão, da frequência cardíaca e até da temperatura corpórea. Enquanto faz isso, durante a noite, prepara o organismo para o despertar. Assim que a produção cai, os hormônios da glândula adrenal sobem, o sistema nervoso muda, e o indivíduo desperta. É uma ação complexa. “Ela é uma pista química importante para nosso relógio biológico funcionar corretamente. Interage com diversos outros centros produtores de sono, localizados no cérebro. É um importante regulador de nosso ciclo sono-vigília. Além disso, tem outras funções, como a ação antioxidante”, explicou Bonadio.Nos últimos anos, o consumo do medicamento aumentou pela facilidade da compra no exterior e pela liberação do uso em alguns países. No Brasil, porém, a melatonina não pode ser vendida, nem com receita médica, em drogarias comuns, apenas em farmácias de manipulação. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) disse que não há registro de nenhum medicamento com a substância no país, e que já recebeu petições de empresas interessadas, “mas até o momento as análises não foram concluídas”. A demora é criticada pelo médico José Cipolla Neto, professor de fisiologia humana na USP e pesquisador da melatonina no Laboratório de Neurobiologia da mesma universidade. Segundo ele, há farmacêuticas que aguardam há anos a decisão da Anvisa e já existem mais de “30 mil trabalhos sobre o tema”. Em sua opinião, a venda deveria ser liberada no país, desde que sob a exigência de receita.
De acordo com o médico e pesquisador, há alguns grupos que podem ser muito beneficiados por uma reposição de melatonina, desde que prescrita por um médico — como idosos, já que a produção cai com a idade—, mulheres na menopausa, diabéticos, indivíduos com mal de Parkinson, autismo ou outra doença neurológica e, por fim, patologias do sono, como quem tem “atraso de fase” (sono que começa e acaba mais tarde que o normal) ou sono dessincronizado. “Mas a primeira coisa que tem de ser dita é que só toma melatonina quem precisa. Ela não é inócua, pode trazer malefícios se for mal administrada. Ninguém vai à farmácia e toma hormônio tireoidiano à toa. É um problema sério para quem toma de forma inadvertida”, afirmou Cipolla Neto. “O cara toma 10 miligramas de melatonina à noite. Só que isso vai ficar no organismo até as 2 horas da tarde do dia seguinte. Dorme bem, mas bagunça a fisiologia, inclusive podendo levar a um estado de resistência à insulina e pré-diabetes. ”Nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, o consumo é liberado, e medicamentos com melatonina podem ser encontrados em farmácias e supermercados, já que são rotulados como suplementos. Não há nem a necessidade de receita médica. Adan Smith, por exemplo, comprou na farmácia em Lisboa uma caixa com 21 comprimidos por cerca de € 19. Quem volta de viagem pode trazer na bagagem, desde que haja prescrição médica, o mesmo valendo para a importação.
Os médicos defendem que a prescrição clínica é fundamental para definir a dose, a formulação certa (liberação rápida ou lenta) e a hora correta para que a melatonina seja tomada. E, depois, deve ser feito o acompanhamento para ver não só se a pessoa está dormindo melhor, mas também se não há sonolência durante o dia, assim como verificar se não há alterações cardiovasculares ou de insulina. Cipolla Neto explicou que um adulto jovem precisa de 0,1 miligrama de melatonina. Mas o que se vende é, no mínimo 0,3 miligrama, sendo extremamente comum nos EUA encontrar dosagens de 5 miligramas, 10 miligramas e até 20 miligramas. E existe uma máxima na administração: não se toma a melatonina para depois ir jantar, porque o hormônio prepara o organismo para o jejum. “Tomar melatonina significa: começou o repouso. A pessoa deve estar preparada para dormir, num ambiente calmo, sem alimentação.” ­ ­ O mais comum, no entanto, é encontrar pessoas que usam a substância sem acompanhamento médico. A representante comercial Camila (nome alterado para preservar a identidade) começou a tomar melatonina quando viajava com uma amiga, usuária frequente, para o Litoral Norte de São Paulo. Gostou tanto que mandou fazer numa farmácia de manipulação da capital, sem que fosse exigida receita. Achou que o efeito não era o mesmo e decidiu comprar importada pela internet. Apesar de não sofrer de insônia, disse que toma o medicamento quando está muito ansiosa e preocupada com problemas pontuais ou “para dormir gostoso”.
É exatamente contra esse tipo de situação que o psiquiatra Caio Bonadio alerta. “A melatonina não deve ser usada sem orientação médica. Alguns efeitos colaterais possíveis são pesadelos, dor abdominal, diminuição do nível de alerta durante o dia, fadiga e dor de cabeça. Mas o grande problema mesmo é a automedicação, situação na qual o paciente nem sequer sabe seu diagnóstico ou se existe mesmo a indicação do uso do hormônio. O grande contra do uso indiscriminado da melatonina é que o paciente acaba demorando demais para procurar ajuda e, quando procura, o problema já está muito complexo, o tratamento fica mais caro e há mais chances de complicações no longo prazo.”

Às vezes, em vez de ajudar a reverter essa situação, a melatonina pode atrapalhar. A produtora de cinema Patricia Aguiar, de 31 anos, nem gosta de tomar remédios, mas viu na melatonina da irmã uma opção “natural” para ajudá-la a dormir quando estava com os horários desregulados pelas filmagens noturnas. Na primeira vez, ela dormiu mal e teve pesadelos, mas, como havia ingerido álcool, achou que a culpa era da bebida. Tentou outra vez. “Depois fiquei toda desregulada e decidi tomar a melatonina de novo para evitar um remédio mais forte. Até me ajudou a cair no sono rápido, não fiquei horas rolando na cama, mas tive vários pesadelos, depois acordava e tinha de voltar a dormir. Não descansei, o sono não foi reparador, pelo contrário”, contou. “Quando conversei com um médico, ele me disse que é um efeito colateral do remédio mesmo e que não deve ser tomado desse jeito.”

Bonadio é taxativo: a melatonina não é indicada para o tratamento da insônia. Na medicina do sono, é indicada para pessoas que têm transtornos do ritmo circadiano, as chamadas “doenças do relógio biológico”. Ou seja, antes de tomar comprimidos para suportar a pandemia, é preciso identificar o que está atrapalhando o sono. Só então dá para saber se a melatonina é mesmo o remédio certo. Para todas as pessoas que não têm tido seu merecido descanso, o especialista aconselha procurar ajuda. “Não faça automedicação. As medicações para o tratamento da insônia são seguras e eficazes, desde que sejam prescritas por profissional habilitado. Além disso, é prudente rever maus hábitos de sono, como sedentarismo, uso excessivo de telas no período noturno, má alimentação, falta de estímulos noturnos e diurnos corretos, falta de rotina de sono, dentre muitos outros.”

Enviar-me um e-mail quando as pessoas deixarem os seus comentários –

DikaJob de

Para adicionar comentários, você deve ser membro de DikaJob.

Join DikaJob

Faça seu post no DikaJob