Bosswares monitoram as atividades de funcionários durante o expediente — Foto: Pond5
Programas de monitoramento e supervisão pessoal colocam em debate a privacidade de funcionários durante as horas de trabalho; entenda como funcionam os bosswares
Por Clara Fabro (colaboração) e Maria Alice Freire, para o TechTudo
Bosswares são softwares utilizados por empregadores para monitorar as atividades de funcionários durante as horas de trabalho. O nome dos programas provém da junção das palavras "software" e "boss" (chefe, em português). O uso desse tipo de ferramenta cresceu durante a pandemia de Covid-19, principalmente depois que o regime de trabalho remoto precisou ser implementado. Nos Estados Unidos, 60% dos empregadores utilizam algum tipo de programa para fiscalizar as atividades dos funcionários que trabalham em casa, segundo estudo realizado pela companhia Digital.com.
Ainda não há dados sobre o uso de bosswares no Brasil. A adoção da ferramenta, entretanto, levanta uma série de questões sobre privacidade e segurança no ambiente de trabalho. Isso porque, para supervisionar o desempenho do trabalhador, esses programas são capazes até de ativar a câmera e o microfone sem o consentimento do usuário e fazer capturas aleatórias da tela, coletando dados biométricos — prática que pode ferir a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados). A seguir, o TechTudo explica como funcionam os bosswares, o que eles podem fazer e explora a legalidade desse tipo de programa no Brasil.
O que são e como funcionam os bosswares
Bossware é como são conhecidos os softwares de monitoramento de funcionários, frequentemente utilizados pelas companhias para medir a produtividade deles durante as horas de trabalho. Esses programas registram e analisam, muitas vezes de forma secreta, todas as atividades dos empregados, e geram inúmeros debates a respeito da privacidade e segurança dessas informações.
O uso desse tipo de programa cresceu de maneira significativa após a pandemia de Covid-19 e da adoção do trabalho remoto como forma de frear a proliferação do coronavírus. Um estudo realizado pela companhia Digital.com sugere que 60% dos empregadores dos Estados Unidos usam algum tipo de programa para espionar as atividades dos funcionários que trabalham em casa.
Adoção de bosswares cresceu após início da pandemia de Covid-19 — Foto: Jason Briscoe/Unsplash
O levantamento também traz dados que avaliam o comportamento de trabalhadores e empresas após a implementação dos programas: cerca de 88% das companhias demitiram funcionários após o uso dos softwares, enquanto 81% dos negócios observaram um aumento no rendimento geral de pessoal.
O que os bosswares podem fazer
Os bosswares oferecem uma grande variedade de recursos para supervisionar as atividades dos funcionários que trabalham de maneira remota ou híbrida. Os mais simples são capazes de registrar o pressionar de teclas, por exemplo, ou identificar o movimento e os cliques do mouse sobre a tela do computador. As informações são usadas para gerar relatórios de rendimento.
Além disso, há também empresas que utilizam inteligência artificial para interpretar os dados coletados pelos softwares. Assim é possível, por exemplo, analisar o texto de um funcionário para identificar possíveis mudanças em seu comportamento.
Bosswares podem registrar o pressionar de teclas para monitorar produtividade de funcionários — Foto: Reprodução/Unsplash
Aplicações mais sofisticadas, por sua vez, podem fazer capturas de tela e gravar vídeos para analisar o desempenho dos funcionários, ativando a webcam e o microfone da máquina. Há também softwares capazes de registrar os destinatários dos e-mails enviados pelos funcionários e acessar serviços como a localização do dispositivo.
Em casos mais específicos, os bosswares também podem usar a webcam da máquina para checar se há outra pessoa no ambiente usando o computador. Empresas podem alegar essa necessidade se um funcionário trabalha com dados sensíveis, por exemplo.
Monitoramento visível e invisível
Existem diferentes tipos de bosswares, que podem oferecer serviços de monitoramento visível ou invisível. Na primeira modalidade, a empresa comunica o funcionário que ele será vigiado durante o período de trabalho, enquanto no monitoramento invisível o empregado não sabe que é fiscalizado e que a empresa pode coletar informações sobre suas atividades.
Bosswares podem acessar a localização e ativar a câmera e o microfone sem o consentimento do usuário — Foto: Unsplash
Uma reportagem conduzida pela organização Electronic Frontier Foundation revelou que os softwares de monitoramento podem oferecer diferentes níveis de transparência aos funcionários. Alguns permitem que os empregados tenham acesso a alguns — ou todos — os dados coletados sobre eles. Outros informam que há coleta de dados, mas não indicam explicitamente quais informações estão sendo capturadas.
Vigilância, interpretação enviesada e outros problemas éticos
O uso de softwares do tipo levanta questionamentos a respeito da segurança e privacidade das informações que são coletadas e também expõe uma série de problemas éticos. Como os bosswares podem ser instalados nos dispositivos sem o consentimento do usuário e têm acesso a diversos recursos na máquina, muitos deles podem equivaler, na prática, a stalkerwares ou spywares — softwares usados única e exclusivamente para espionagem.
Uma reportagem conduzida pela instituição Electronic Frontier Foundation revela, inclusive, que é comum que os softwares sejam desenvolvidos para evitar que os funcionários consigam detectá-los. A organização também conclui que grande parte dessas informações são coletadas de maneira desproporcional, antiética e desnecessária.
Uso de bosswares levanta questionamentos sobre privacidade no ambiente de trabalho — Foto: Unsplash
Em resposta à pesquisa desenvolvida pelo portal Digital.com, donos de empresas afirmaram que buscam os programas majoritariamente para supervisionar o rendimento de pessoal. De acordo com o estudo, 79% dos empregadores desejam entender melhor como os empregados administram suas horas de trabalho. A pesquisa concluiu que cerca de 52% dos funcionários passa entre uma e quatro horas por dia fora do seu ambiente de trabalho — mas a forma como esses dados são interpretados pode ser questionada.
Uma matéria publicada pelo jornal britânico The Guardian conta a história de um funcionário de uma grande varejista norte-americana. James, como foi chamado, passou a trabalhar em regime de home office durante os meses iniciais da pandemia de Covid-19 e recebeu um notebook da própria companhia para desempenhar suas tarefas. Entre suas atribuições estavam o preenchimento de determinadas informações em um banco de dados da empresa.
Meses após o início da nova rotina nesse esquema de trabalho remoto, James e outros funcionários foram convidados a participar de uma reunião. De acordo com a companhia, eles não estavam passando a quantidade de horas que deveriam preenchendo os dados na planilha. Nenhum deles sabia que estava sendo monitorado. Mais tarde, James concluiu que essa lacuna no tempo de trabalho se referia, na verdade, às pausas que fazia para comer. Além disso, ele também tinha outras atribuições que consumiam tempo.
Bosswares no Brasil
No Brasil ainda não existe nenhuma regulamentação específica sobre o uso de bosswares, sendo necessário fazer uma análise mais genérica do Código Trabalhista para entender onde softwares como estes se enquadram. Segundo o Art. 6º da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), é permitido ao empregador o uso de meios de supervisão do trabalho.
"Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio", afirma a lei.
Olívia Pasqualeto, professora de Direito do Trabalho da FGV Direito SP entende, por este parágrafo, que o uso dos softwares está autorizado. Entretanto, ela ressalta que há uma série de limites que devem ser respeitados pelo empregador ao fazer a fiscalização.
Uso de bosswares para monitorar funcionários no home office pode ferir a inviolabilidade do domicílio — Foto: Unsplash
”Já é muito consolidado na jurisprudência a impossibilidade de instalar câmeras de segurança em banheiros do trabalho, por exemplo”, recobra. Ela explica que, de forma análoga, o uso de softwares capazes de ativar a câmera do computador, estando o trabalhador no espaço doméstico, poderia violar a intimidade do funcionário e constrangê-lo.
“Ele [o funcionário] precisa estar ciente dessa possibilidade [de monitoramento]. A casa dele, por exemplo, que é um asilo inviolável, pode estar sendo exposta”, afirma. Vale lembrar que o direito à privacidade de imagem está assegurado pela LGPD. Por isso, segundo a professora, a coleta de filmagens que identifiquem o trabalhador, com dados biométricos, precisa ser autorizada pelo empregado.
Pasqualeto acredita, aliás, que o simples uso de bosswares para controlar a jornada de trabalho deve ser informado pelo empregador. “Embora não seja necessariamente um dever trabalhista da empresa avisar que monitora os empregados, é uma obrigação civil estabelecer quais são as cláusulas em que a atividade vai ser prestada”, afirma. Esse informe pode ser feito tanto por meio do contrato de trabalho, quanto por regulamentos internos que esclareçam os meios de supervisão utilizados.
Com informações de Digital.com, The Guardian e EFF
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