Folha de S.Paulo
Jornalista: Cláudia Collucci
21/11/19 - Quase metade (45%) dos médicos que atuam na atenção primária à saúde da zona leste de São Paulo, a porta de entrada do SUS, deixa o emprego no primeiro ano. A maioria é recém-formada e sem especialização.
A constatação está em uma pesquisa da Faculdade de Medicina da USP que avaliou fatores de desligamento e de permanência de médicos em unidades básicas de saúde da região mais populosa da capital, com 35,5% dos moradores.
Longas distâncias, trânsito, pobreza, violência, condições de trabalho inadequadas, oferta de emprego na rede privada, falta de tempo para conciliar trabalho com estudo estão entre os fatores que afastam os médicos da atenção primária do SUS, área tida como prioritária da atual gestão do Ministério da Saúde.
Além do impacto financeiro, a alta rotatividade leva à sobrecarga de trabalho dos profissionais que permanecem nos serviços, à quebra de vínculos com a equipe, a um menor índice de resolutividade e à desassistência dos mais vulneráveis.
Tese de doutorado da médica canadense Monique Bourget, a irmã Monique, que coordena a atenção primária da organização Santa Marcelina, o estudo analisou características de médicos da zona leste e fatores associados ao desligamento desses profissionais.
A Santa Marcelina é responsável hoje por 52 unidades de saúde na zona leste, 14 UBS (unidades básicas de saúde tradicionais) e 259 equipes de saúde da família. Juntos atendem quase 970 mil pessoas, 40% da população da região.
Foram estudados um total de 1.378 médicos no período entre 2001 e 2016. A maioria dos contratados tinha dois anos ou menos de formado (54%) e nenhuma especialidade médica (88%).
“É um perfil muito jovem e inexperiente, médicos e médicas que acabaram de sair da faculdade sem concluir uma residência”, diz Mario Scheffer, professor da USP e orientador da pesquisa.
É o caso de médica Angélica Uno, 29, que se formou na PUC-Campinas ano passado. Ela trabalhou na UBS Kemel, na zona leste, por 45 dias e, anteriormente, numa UBS de de Poá (região metropolitana de SP) por seis meses.
Afirma que deixou o último emprego para se dedicar à residência médica em pediatria. “Eu não estava conseguindo conciliar meus estudos com o trabalho. Aprendi muito na zona leste, mas não deu.”
Segundo a pesquisa, o tempo médio até o desligamento do emprego foi de dois anos após a contratação, com uma taxa de rotatividade 45% no primeiro ano.
“É um custo muito alto para a gestão trazer esse profissional, fazer a capacitação, a integração. Você não consegue resolutividade, mudar os indicadores de saúde da região. A população mais pobre fica desassistida, mais doente. É o ciclo da pobreza que continua”, diz Bourget.
A zona leste reúne alguns dos piores indicadores de saúde da capital. A taxa de mortalidade infantil, por exemplo, é de 13,5 por 100 mil— enquanto na zona oeste é de 8,4, e no município todo, de 11.
Para médico Mário Dal Poz, que já coordenou o programa de recursos humanos em saúde da OMS (Organização Mundial da Saúde), essa alta taxa de rotatividade de médicos é um escândalo.
“É uma situação insustentável. Você imagina se todo ano uma empresa demitisse e contratasse 50% do seu pessoal”, diz ele, que também é professor do Instituto de Medicina Social da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
“Mais de 10% de rotatividade por ano gera um custo gigantesco em vários sentidos. De recrutar, contratar, treinar.”
Dal Poz afirma que, embora a oferta da mão de obra médica seja um problema mundial, muitos países conseguiram equacioná-lo.
Na Austrália, por exemplo, há uma agência que coordena as contratações e desligamentos de médicos dos setores público e privado. Lá, o tempo médio de permanência no emprego é de quatro anos.
“Não tem essa coisa de o privado competir com o público. Aqui é uma briga. Os médicos formam uma categoria como qualquer outra, que reage a incentivos financeiros e não financeiros.”
Segundo Monique Bourget, o mercado está aquecido para os médicos da atenção primária. “O médico de família é cobiçado pelos planos de saúde. É comum ele sair do público e ir para o privado. Esse duplo sistema de saúde é deletério para a organização.”
Embora não tenha estudado a fundo as motivações da saída desses profissionais da zona leste, ela aponta que há um conjunto de fatores envolvidos, além do salário —hoje entre R$ 15 mil e R$ 19 mil por 40 horas semanais.
“A violência é bem presente, tem a questão da sobrecarga no trabalho. Quando você atende em regiões com baixos índices de desenvolvimento humano, vem junto com a saúde o desemprego, a pobreza. Muitos médicos não estão treinados para isso. O trabalho acaba ficando pesado emocionalmente.”
Um cruzamento feito com os dados da Demografia Médica do Brasil mostra que a maioria dos médicos que deixou o emprego na zona leste permaneceu na capital (69% deles).
Após três anos do desligamento, 11,5% deles tinham concluído uma residência médica. Mas só 12,4% se especializaram em medicina de família e comunidade, por exemplo.
“Muitos procuraram especialidades que não têm nada a ver com a atenção primária. Ficaram um tempo na periferia porque é um emprego mais fácil de conseguir e porque têm dívidas com créditos educativos.
Então, fazem esse pit-stop para complementar a renda e pagar a dívida”, explica Scheffer.
O problema já começa na formação médica, segundo Bourget. “Há uma orientação para que as faculdades formem generalistas, mas dentro das próprias instituições a medicina de família não é valorizada, as vagas de residência não são preenchidas.”
Dal Poz diz que o caminho é que os governos montem pacotes com incentivos financeiros e não financeiros para reter os médicos. “O pacote precisa ser dinâmico e revisto regulamente com base em estudos. Na Inglaterra, os GPs [o equivalente aos médicos de família] têm grande prestígio na sociedade.”
A autora do estudo diz que apresentará às secretarias estadual e municipal de saúde propostas para reduzir a alta rotatividade de médicos.
Entre elas estão a valorização da residência em medicina de família e de toda a equipe que atua na atenção primária, como já ocorre em Florianópolis (SC), por exemplo.
A prefeitura da capital catarinense exige a residência em medicina de família para a contratação de médicos na atenção primária e aprovou protocolos em que a enfermagem pode realizar consultas, exames e prescrição de alguns remédios.
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