Daniel Martins de Barros: Vacinas mentais

O Estado de S.Paulo

Colunista: Daniel Martins de Barros*

18/11/19 - Certa vez, numa comissão de bioética, surgiu a pergunta se seria certo instalar câmeras nas pias dos hospitais de modo a garantir que médicos, enfermeiros e acompanhantes lavassem corretamente as mãos. Ninguém discutia que lavar as mãos apropriadamente é fundamental para a prevenção de infecções hospitalares, claro. Qual a dúvida então? A questão era se tal monitoramento seria uma invasão de privacidade e restrição da autonomia das pessoas.


Essa medida já havia sido proposta – e negada – em outra comissão de bioética. E coube a mim preparar um parecer embasado, justificando ou não tal medida. Se fosse você, o que diria? E como defenderia seu ponto de vista?

 

Como eu era favorável e conhecia as objeções à proposta, optei por um caminho arriscado, mas que me pareceu uma estratégia ao mesmo tempo eficaz e honesta: questionar e derrubar os argumentos contrários. Não vou aborrecer os leitores com a argumentação (o texto está disponível em www.estadao.com.br/e/parecer); resumidamente, eu assumia que sim, era uma invasão de privacidade, mas que este valor não é absoluto e fica em segundo plano num confronto com o valor de preservar a vida. E entendia ser de fato uma forma de restrição à autonomia, mas uma restrição à autonomia de ser negligente (não lavar as mãos adequadamente).


O parecer foi aprovado no final das contas, talvez por, sem saber, as pessoas terem sido vacinadas. Vacinadas contra os argumentos contrários.


Eu não conhecia à época a teoria da inoculação, mas esse é o princípio por trás da estratégia. Ela foi formalizada pelo psicólogo Willian James McGuire no começo dos anos 1960 (embora provavelmente já fosse usada desde há muito), que usou a vacinação como uma metáfora. Colocar o organismo em contato com vírus enfraquecidos permite que o corpo crie anticorpos contra eles sem que adoeça. Da mesma forma, apresentar argumentos contra uma ideia (verdadeiros, mas não definitivos) que possam ser derrubados, ajuda a mente a se proteger contra outros ataques àquela ideia.


A teoria vem sendo testada nesses sessenta anos desde que foi apresentada e se mostra bastante consistente, já tendo sido incorporada aos manuais de persuasão ao redor do mundo. E desde o início se pensava que, melhor que a imunização passiva (apresentar os contra-argumentos para as pessoas), seria a imunização ativa, pedindo que elas mesmas derrubassem as ideias contrárias, aumentando a eficácia do processo.


Esse ano dois pesquisadores ingleses resolveram levar essa ideia a um patamar inédito, na tentativa de combater as fake news. Para enfrentar uma praga com ares de epidemia seria preciso uma vacinação em massa. Mas como abordar cada um dos temas sujeitos a distorções e manipulação na internet seria impossível, a dupla resolveu atacar o próprio mecanismo de distorção e manipulação, criando o jogo Bad News (www.estadao.com.br/e/news). Ali a pessoa assume o papel de um criador de notícias falsas e vai sendo guiada para, dentro do ambiente do jogo, desenvolver seu site, seu perfil nas redes sociais, criar memes de impacto, tudo isso enquanto vê seu alcance crescer em termos de impacto e número de seguidores.
O jogador ganha distintivos conforme adquire noção das principais estratégias por trás das fake news: criação de perfis falsos, apelo emocional, estímulo à polarização, propagação de teorias conspiratórias, desqualificação de oponentes e campanhas ofensivas a outras pessoas.


Para testar a eficácia da ferramenta os cientistas mediram o grau de credibilidade em diversos tipos de notícias, verdadeiras e falsas, antes e depois de participar do jogo, em quinze mil usuários. Descobriram assim que a estratégia funciona: em alguns casos houve redução de 7% no apoio a notícias falsas. Pode não parecer muito, mas com as margens apertadas que vemos decidir destinos em eleições ou plebiscitos, reduzir um pouco que seja as crenças falsas de muitas pessoas faz muita diferença no final.


Não encontrei uma versão equivalente ao Bad News em português. Mas faço votos que o site prospere e alcance milhões de pessoas. Antes que surja alguma notícia falsa condenando até mesmo esse tipo de vacinação.

 

(*) Daniel Martins de Barros é psiquiatra

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