Todo medicamento ou dispositivo médico passa por um ensaio clínico antes de chegar ao mercado. Porém, é difícil para o público entender este processo por muitas razões, incluindo alegações de propriedade sobre a informação, jargões científicos complicados, burocracia, e a boa e velha corrupção.
E é aí que surgem as dúvidas sobre a efetividade de uma pílula anticoncepcional ou a precisão de um exame, por exemplo. Por isso, a médica e consultora de tecnologia para medicina Molly Maloof vai nos ajudar a descobrir algumas verdades ocultas e entender alguns equívocos comuns sobre os estudos clínicos:
1. Muitos ensaios clínicos realizados não relatam seus resultados
Você pode olhar a situação e as conclusões de estudos clínicos online. Há indicações sobre onde procurar diferentes estudos e interpretar seus resultados. Mas isto não é tão útil como se poderia pensar, pela simples razão de que muitas das instituições que realizam estudos não relatam seus resultados.
A falta deste tipo de informação foi um problema no passado. Se uma droga ou dispositivo não forneceu os resultados desejados em um estudo, este será destruído e um outro estudo será iniciado. Jogue para cima dez moedas cem mil vezes e por pura coincidência você vai acabar tirando dez caras ou dez coroas. Da mesma forma, se você testar uma droga muitas vezes, por acaso um estudo vai indicar que a droga é efetiva ou que tem um efeito forte em vez de fraco. Para combater o problema das empresas que publicam apenas estudos cuidadosamente selecionados, foram instituídas normas de notificação obrigatória. Ainda assim, como muitos estudos são realizados, rastrear todos os resultados é algo complicado e as empresas podem conseguir escapar da fiscalização.
Há certos assuntos que são mais comuns de escaparem da publicação obrigatória. Estudos de drogas nas fases finais de testes são mais propensos a apresentar resultados, provavelmente porque se uma droga chega à Fase IV de um ensaio clínico, é quase certo que tenha algum efeito positivo. Ao contrário do que se poderia esperar, não são as grandes empresas farmacêuticas que estão tranquilamente enterrando resultados. Estudos financiados pela indústria são mais propensos a publicar relatos que estudos financiados por outras fontes.
2. As pessoas em que os medicamentos são testados podem não ser aquelas que vão usá-lo
Há boas razões para usar apenas algumas pessoas para testes de medicamentos. Tal como acontece com qualquer outro tipo de teste, manter variáveis em um mínimo simplifica o processo, especialmente nas fases iniciais. Se alguém tem um problema de saúde depois de tomar a droga, é melhor ter uma boa indicação de que era mesmo aquela droga que causou o problema, não algo que aparece devido à idade ou alguma doença não relacionada.
Ocasionalmente, porém, limitar o grupo testado para obter os melhores resultados nega o propósito destes mesmos testes. As mulheres são muitas vezes deixadas de fora dos ensaios por causa de preocupações sobre as variações hormonais que interagem com o funcionamento da droga. Pessoas com doenças menores não relacionadas àquele medicamento também são deixadas de fora, mas ainda estão entre aqueles que tomam o medicamento quando o mesmo passa a fase de testes clínicos.
Ainda, há estudos clínicos que são terceirizados para outros países. Pode ser mais barato testar drogas no exterior e pessoas de outros países podem estar mais dispostas a tomar drogas – especialmente aquelas para uma doença que já é tratável com medicamentos existentes no país de origem do fabricante. Não há nada de necessariamente errado com isso, mas significa que as drogas podem ser testadas utilizando apenas grupos étnicos específicos, bem como em condições sociais e físicas específicas que podem não estar presentes no grupo à qual tal produto se destinará primariamente.
Além do mais, os ensaios nem sempre relatam o fato de que fazem testes usando apenas um subconjunto de pessoas. Assim, uma mulher idosa sedentária com algum problema de saúde menor alheio àquele para qual ela está tomando os medicamentos não tem ideia de que ela está tomando um medicamento que foi testado apenas em homens ativos e saudáveis de 25 anos de idade. Isto não invalida o teste clínico, porém representa um problema comprometedor. Minimizar variáveis é uma boa estratégia para a compreensão do funcionamento de uma droga, contudo pode levar a resultados desanimadores quando é usada em uma população mais ampla, onde a variação é a regra.
3. Algumas tecnologias médicas não são realmente testadas
Com a explosão da tecnologia médica e dos aplicativos, estamos vendo um grande número de recursos destinados a monitorar a saúde das pessoas. Algumas destas tecnologias não se qualificam como médicas. Algo que não é muito mais complexo do que um podômetro combinado com um meio eletrônico de rastreamento de ingestão de alimentos não pode realmente ser chamado de tecnologia médica. E também há o material que cruza essa linha. Por exemplo, há o Beddit, um dispositivo e aplicativo que monitora o seu sono e diz-lhe como “dormir melhor”. Ele pode monitorar a sua frequência cardíaca e seus padrões de ronco, mas pode realmente dizer o quão bem você dorme?
Se tal app pode ou não fazer isso, ele não passou por um teste realmente rigoroso. Polissonografia clínica – a medição de quão bem você está dormindo – envolve um eletroencefalograma, um estudo de saturação de oxigênio no sangue e o rastreamento do movimentos dos olhos. Não queremos dizer que o Beddit é inútil. Ele só existe, junto com um monte de tecnologia médica, na área nebulosa entre brinquedos úteis e aparelhos científicos reais.
Embora esta tecnologia possa ser testada, não é o mesmo tipo de teste aos quais os instrumentos médicos reais ou drogas são submetidos. Além disso, como não estão vendendo a tecnologia médica oficial, as empresas neste espaço não estão sujeitas às mesmas leis de privacidade que as instituições médicas oficiais são. Enquanto não há nada intencionalmente nefasto acontecendo, é importante perceber que há toda uma indústria semi-médica que existe fora das diretrizes da medicina atual.
4. Ensaios clínicos estão sendo terceirizados
Durante muito tempo, havia um modo padrão de testes para ensaios clínicos. Era mais ou menos assim: “A droga X pretende fazer Y. Vamos testar X para ver se ela faz Y”. Geralmente, os testes eram feitos pelos pesquisadores, ou pelo menos as instituições que desenvolveram tal droga. Agora, o processo está sendo simplificado e passando para as mãos de organizações de pesquisa terceirizadas.
Qual o problema? Isso está afetando a forma como os testes são feitos. Em vez de uma prova unificada (pode X fazer Y?), há uma espécie de ramificação das possibilidades de teste (pode X fazer Y? Se não, X pode fazer Z ou Q?). É o chamado projeto de adaptação, que está lentamente se fortalecendo. Dependendo de como o medicamento se sai em diferentes pontos, o teste é ajustado. O mais simples dos ajustes é um fim precoce para o estudo. Obviamente, qualquer estudo iria parar se a droga fosse vista como ativamente prejudicial, mas o projeto de adaptação permite uma parada se, em fases posteriores, a droga não estiver obtendo os resultados desejados.
Se o medicamento não está funcionando tão bem quanto o esperado, há também a opção de ajustar a dose ou o grupo de pessoas que estão tomando o medicamento. Se um medicamento de alívio da dor não está funcionando para as pessoas que estão com muita dor, talvez ele irá funcionar em pessoas que estão apenas com dores leves ou que estão sentido dor devido a uma causa particular. Talvez ele vá funcionar triplicando a dose ou mudando o horário de ingestão das doses. Ao invés de confirmar ou desacreditar um uso para as drogas, os estudos estão se tornando uma espécie de exploração guiada do que elas podem fazer. Há prós e contras para esta ideia. Embora o projeto de adaptação possa conseguir sustentar drogas fracas, também pode agilizar um processo desnecessariamente volumoso e permitir que os pesquisadores se concentrem em usos específicos de novas drogas, em vez de adivinhar suas melhores aplicações.
5. A indústria privada financia a grande maioria dos ensaios clínicos e isso afeta a ética
Desde os anos 1980, houve uma grande mudança no financiamento de estudos clínicos. Enquanto o poder público norte-americano cortou gastos, a indústria os aumentou. Atualmente, entre 80 e 90% dos estudos são financiados pela indústria privada. Mesmo as melhores empresas existem para lucrar e a melhor maneira de fazer isso acontecer é fazer com que a sua droga chegue ao mercado o mais rápido possível. As questões éticas surgem quando o negócio do desenvolvimento de drogas em conflito com a distribuição dos medicamentos pelos prestadores de cuidados de saúde, que não têm informações suficientes sobre os riscos da droga.
Um bom exemplo disso é o OxyContin. O cloridrato de oxicodona, nome genérico do medicamento, é uma maneira fantástica de lidar com a dor crônica. Ao contrário de muitos outros medicamentos para a dor, ele não tem um limite além do qual deixa de ser eficaz. Um punhado de aspirina não vai tirar mais dor do que uma dose regular de aspirina, mas cloridrato de oxicodona alivia cada vez mais a dor com o aumento da dose. É também um medicamento de liberação por tempo eficaz, o que significa que as pessoas que a utilizam não sentem dor alguma por cerca de doze horas. Qualquer um que esteja em constante dor tem a sua vida imensamente melhorada por ele.
Porém, como seu mecanismo de liberação por tempo pode ser ignorado, e porque seus efeitos aumentam à medida que a dose é aumentada, ele pode ser extremamente viciante. O abuso da droga disparou à medida que os pacientes e usuários de drogas recreativas ficaram viciados. Este foi um caso não de uma companhia de droga malvada tentando vender estricnina como remédio para resfriado, nem de médicos incompetentes distribuindo pílulas inúteis ou prejudiciais. O problema foi que a droga era eficaz, mas inerentemente viciante, e os médicos precisavam ser treinados a lidar com isso.
Infelizmente, nem os médicos dentro ou fora das companhias farmacêuticas tinham o poder de fazer isso acontecer. O problema é que exigir que os médicos sejam treinados em reconhecer os sinais de vício antes de prescrever o medicamento significaria jogar recursos adicionais em uma droga que já funciona exatamente como ela foi concebida para funcionar. Um novo tipo de droga não apenas trata um problema médico, ela muda o ambiente médico, e não é “trabalho” de ninguém lidar com isso (pelo menos da perspectiva da indústria).
6. A maioria dos médicos não entende completamente os ensaios clínicos
Cerca de 10% dos médicos dos EUA inscrevem pacientes para 80% dos ensaios clínicos. Há uma enorme lacuna entre estes 10% e o resto. Muitos médicos não sabem como fazer para que seus pacientes participem deles e, mais importante, não sabem como interpretar os resultados de um ensaio clínico. Há uma divisão entre a comunidade de médicos que trabalham regularmente com os estudos e aqueles que trabalham regularmente com os pacientes, não porque qualquer um deles seja incompetente, mas porque a pesquisa é uma área legitimada de especialização.
Maloof, que foi a consultora para este artigo, trabalha com tecnologia médica. Uma grande parte de seu trabalho é a tradução entre os pesquisadores que se especializam em tecnologia médica e os médicos que trabalham com pacientes.
A pesquisa da tecnologia médica se torna mais complicada a cada dia, como as pesquisas sobre o câncer, que passaram de bisturis à radiação, às drogas e à genética. Se o tumor tem um marcador genético, um determinado medicamento pode ser receitado. Se ele tem um outro marcador genético, uma droga diferente é prescrita. Além disso, os diferentes regimes de tratamento são constantemente atualizados. Mesmo se todas as pesquisas de ponta fossem cobertas pelas escolas de medicina, seria substituída por outra pesquisa em alguns anos na carreira daquele novo médico.
Então, enquanto provavelmente sempre vai haver espaço para melhorias em como os ensaios são realizados e relatados, uma área mais urgente de reforma pode estar em como os produtos desses estudos passam do mundo da pesquisa para o mundo da medicina. Quem tem a responsabilidade de educar os médicos sobre todos os efeitos, incluindo os sociais, de uma nova droga? Quem é responsável por estudos de acompanhamento quando um modo inteiramente novo de tratamento torna-se parte da sociedade? Quem preenche as lacunas entre o mundo da pesquisa e o mundo prático da medicina? As companhias que fazem os medicamentos? Os hospitais? Regulamentação governamental? Estas são perguntas que precisam ser respondidas, e logo.
Fonte: Hypescience
Autor: Jéssica Maes
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