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O Venvanse, um remédio controlado para o déficit de atenção, vira moda no centro financeiro da capital por supostamente melhorar a eficiência no trabalho — com sérios riscos à saúde. Alexandre Battibugli/Veja SP

 

Usado para tratar déficit de atenção, o Venvanse ganha força por supostamente aumentar o desempenho no trabalho — às custas de riscos à saúde

 

Por Fernanda Bassette, Pedro Carvalho, Gabriela Del’Moro e Alessandra Balles

 

Paulo*, 34, é analista de riscos de uma conhecida marca de investimentos. O escritório da empresa fica próximo à Avenida Faria Lima, em um prédio espelhado dos frenéticos quarteirões que vão do cruzamento da Avenida Cidade Jardim ao da Juscelino Kubitschek.

Como outros colegas, ultimamente ele tem apelado a um medicamento de uso controlado para aumentar o desempenho no trabalho: o Venvanse (remédio controlado para o tratamento de transtorno de déficit de atenção e compulsão alimentar, vendido no Brasil pela Takeda Pharma), um derivado da anfetamina cujo consumo disparou no país. “Tomo ao menos três vezes por semana. Você fica superfocado, encara melhor as longuíssimas jornadas”, ele diz.

 

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Cápsulas do medicamento: venda ilegal no Telegram. Alexandre Battibugli/Veja SP

 

“O estresse estava me fazendo ficar desatento, com a cabeça cansada. O remédio me deixa concentrado, produtivo e — é até estranho dizer — mais inteligente”, relata o financista. “No nosso mercado, a competição é extrema. Estou em um momento profissional importante, com oportunidades de crescimento. Essa é minha prioridade agora”, ele afirma.

Pode soar apenas como um paciente satisfeito — não fosse o fato de que o Venvanse não se destina a esse uso e costuma trazer sérias consequências à saúde se tomado sem indicação médica. Ainda assim, é um depoimento comum no centro financeiro da capital, onde a Vejinha conversou com frequentadores e funcionários de empresas da região.

É fácil constatar que a pílula está em alta no mercado — especialmente no financeiro. Nos últimos dois anos, a venda do medicamento dobrou no país: passou de 66 533 para 137 468 caixas anuais. Isso somente nas farmácias — onde chegou a estar em falta nos últimos meses. A reportagem, porém, acessou grupos de Telegram onde o remédio é comprado sem “formalidades” como consultas ou receitas médicas (veja abaixo).

 

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“FARMÁCIA” NO TELEGRAM - A reportagem acessou grupos de venda de medicamentos de uso restrito com milhares de membros

no Telegram. O Venvanse é um dos mais pedidos. A compra deveria ser feita com receita amarela, de alto controle médico. Reprodução/Veja SP

 

A prescrição correta, vale notar, só pode ser obtida com uma receita amarela, ainda mais controlada que as preenchidas em papel azul, também destinadas aos medicamentos restritos. “Como não tenho prescrição, pego os comprimidos com minha irmã, que usa Venvanse. Se vou ter uma semana puxada, de dormir só 3 ou 4 horas por noite, já peço alguns para ela”, diz um analista de investimento de um banco do mesmo “quadrilátero” da Faria Lima.

Venvanse é o nome comercial do dimesilato de lisdexanfetamina. É vendido pela Takeda Pharma, um laboratório de origem japonesa. Em 2019, a farmacêutica comprou a britânica Shire, então dona da patente do medicamento, cuja comercialização no Brasil é liberada pela Anvisa desde 2010. O Venvanse possui duas indicações médicas: o déficit de atenção (ou TDAH) e a compulsão alimentar, já que a anfetamina reduz o apetite. É caro: uma caixa com 28 cápsulas de 50 miligramas custa por volta de 500 reais, mas no mercado ilegal chega a 700.

 

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Veja SP

 

“O Venvanse é uma anfetamina mais fraca que as que existiam no país — como anfepramona, femproporex e mazindol —, atualmente proibidas pela Anvisa justamente pelos riscos à saúde. As anfetaminas são estimulantes do sistema nervoso central. Causam tolerância em quem não tem indicação clínica para tomá-las: é preciso doses cada vez maiores para ter o mesmo efeito”, diz Patrícia Hochgraf, psiquiatra e coordenadora do Programa da Mulher Dependente Química (Promud), do Hospital das Clínicas — o uso abusivo de anfetaminas será tema de um debate do grupo em evento no dia 19. “As pessoas estão tomando descontroladamente”, ela alerta.

Nos cafés e lobbys da Faria Lima, é fácil perceber que o remédio conquistou especialmente os jovens do mercado financeiro — e, por sinal, outro público além dos executivos da região que tem lotado os consultórios devido ao abuso do medicamento são estudantes de vestibular e adolescentes que frequentam festas.

“Ele é ‘o cara’ do Venvanse”, brincam os amigos de um rapaz próximo dos 30 anos, gestor de um fundo de investimentos em um dos prédios mais emblemáticos do pedaço, o Pátio Victor Malzoni. De terno azul royal bem cortado, o jovem — que tinha descido com os colegas para fumar — não titubeia: “Tomo há dois anos, mais ou menos três vezes na semana, sempre que preciso entregar algo a mais no trabalho, ou em dias de maior pressão”, ele conta.

Questionado sobre os efeitos negativos dos dias sem o medicamento, ele dá uma risada: “Quando não tomo, é o meu ‘fim de semana’”, diz. Tal a fama entre os mais jovens, o Venvanse virou uma espécie de piada nas redes sociais — ainda que os riscos do uso abusivo sejam bem sérios (leia aqui o depoimento de Maria Luiza Silveira).

“Não tenho diagnóstico de TDAH, nem os meus amigos. Mas tomo porque o Venvanse deixa tudo mais acelerado, você até digita mais rápido”, afirma Marcello*, 43, publicitário que criou o perfil de Instagram @VenvanseBateu.

A página usa o humor para retratar a euforia causada pelo remédio, assim como a impaciência dos usuários quando caem os níveis de dopamina durante o efeito rebote. Um dos posts anuncia um boné com as palavras Venvanse for break fest (ou Venvanse no café da manhã). Camisetas com dizeres parecidos, como Venvanse makes me happy (acima), também são vendidas na internet. “Estive em um casamento no fim de semana e tinha um moço com uma camiseta escrito ‘Venvanse: No party without it’ (não tem festa sem ele)”, conta Maria Luiza.

 

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O remédio virou piada em perfis como o Faria Lima Elevator, popular no centro financeiro da capital. Twitter/Reprodução

 

Esse uso “recreativo” ou “profissional” pode levar ao vício e tem sérios riscos à saúde. “Tomar para ‘ficar mais alerta’ tem o mesmo efeito dos chamados ‘rebites’, usados por caminhoneiros. É perigosíssimo. Pode causar sobrecarga cardíaca, modificar o ritmo do sono e trazer prejuízos à saúde mental”, diz Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria.

“Quando a pessoa interrompe o uso abusivo, o sistema nervoso está menos sensível à dopamina do próprio corpo — e vem a fissura”, diz Lyvia Freire, neurocientista doutora em psicofarmacologia. “A longo prazo, o uso inadequado traz muito mais problemas do que benefícios”, ela conclui.

O fabricante, é claro, também condena o mau uso da substância. “Os tratamentos (com Venvanse) devem ser utilizados somente para as indicações que constam em bula e com prescrição médica”, afirma a Takeda Pharma. “O desabastecimento temporário ocorreu em função de variações de demanda e de dificuldades na importação, situações já solucionadas”, diz a nota.

 

Posicionamento da Takeda Pharma, fabricante do medicamento:

A Takeda firmemente rechaça qualquer iniciativa que estimule o uso de medicamentos sem prescrição médica e reforça que os tratamentos devem ser utilizados somente para as indicações que constam em bula e com prescrição médica. O dimesilato de lisdexanfetamina, princípio ativo do Venvanse®, foi aprovado no Brasil pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) em julho de 2010 na condição de ‘Venda Sob Prescrição Médica’. De acordo com orientações descritas na bula, o medicamento é indicado para o tratamento do Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) e do Transtorno de Compulsão Alimentar (TCA), sendo a última indicação, aprovada desde novembro de 2018. Então, a utilização deste produto para qualquer outra finalidade que não as aprovadas no Brasil é considerada como uso fora do estabelecido em bula (off-label), não apresentando comprovação de eficácia e segurança. Tão importante quanto alertar sobre os prejuízos à saúde causados pela automedicação ou pelo uso indiscriminado de medicamentos, é reforçar a importância do correto tratamento do TDAH, de acordo com as recomendações médicas. Reforçamos ainda que a compra do medicamento exige retenção da receita na farmácia e que sua importação é controlada e limitada pela ANVISA.

 

Publicado em VEJA São Paulo de 16 de novembro de 2022, edição nº 2815

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