Jornalista: Cláudia Collucci
Folha de S.Paulo
02/10/19 - Uma associação de pacientes do Rio de Janeiro está fornecendo óleo de maconha medicinal para um grupo de pessoas mesmo sem autorização judicial para isso. Chama a prática de “desobediência civil pacífica” e já a declarou, inclusive, para a Justiça.
Presidida pela advogada Margarete Brito, a Apepi (Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal) ensina famílias a cultivar a maconha, faz a ponte entre médicos e pacientes e tem parceria com a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) em eventos e pesquisas sobre o tema.
Margarete é mãe de Sofia, 10, que tem uma síndrome rara (CDKL5). Ela foi a primeira do país a obter aval da Justiça para cultivar Cannabis em casa e dela extrair o remédio para aliviar as convulsões da filha.
Isso foi em 2017. A história inspirou outras pessoas com problemas de saúde, que hoje são associadas da Apepi.
Agora, Margarete decidiu extrapolar o seu habeas corpus individual e passou a produzir óleo de Cannabis para 18 pacientes de famílias de baixa renda, que não têm condições de importar o produto.
Seu advogado, Fernando Lau, ingressou com ação na Justiça Federal pedindo uma liminar que autorize a associação a plantar e a produzir legalmente o óleo para os pacientes associados —da mesma forma como ocorre com outra associação de pacientes em João Pessoa (PB).
“Na ação judicial, informei o juiz que a gente já planta para os associados. Eu disse: ‘a gente entende isso não como um crime, mas, sim, uma desobediência civil pacífica em razão do estado de necessidade dessas pessoas, que estão em busca do direito à vida, a garantia maior constitucional.”
Para o advogado, o juiz está numa porta sem saída. “Ou ele prende todo mundo por tráfico ou associação ao tráfico ou ele... São vidas salvando vidas. Ou são pais cuidando de filhos ou filhos cuidando de pais. Não é brincadeira de garoto. É um negócio sério.”
O plantio acontece no quintal da casa de Margarete, na Urca, na zona sul do Rio. As plantas, de quatro tipos diferentes, que produzem CBD (que não dá barato) e THC (que tem efeito psicoativo).
Mesmo ciente que corre riscos com a “desobediência civil pacífica”, a advogada diz que continuará plantando e fornecendo o óleo para os pacientes com ou sem autorização da Justiça. “Sabemos que não estamos acima do bem e do mal, mas vamos seguir com esse trabalho de resistência.”
A ação segue em segredo de Justiça, e o magistrado aguarda mais informações da União e da Anvisa sobre o assunto.
Na última quinta (26), a comissão de direitos humanos do Senado aprovou relatório favorável a uma proposta que regulamenta a Cannabis medicinal no Brasil, que agora passa a tramitar como um projeto de lei, seguindo para comissões de assuntos sociais e de constituição e justiça, antes de ser votada em plenário.
Marcos Langenbach, marido de Margarete e vice-coordenador da Apepi, diz que a demanda pelo óleo de Cannabis é enorme. Entre os pacientes, há desde as crianças e adolescentes com epilepsia e autismo até idosos com Alzheimer e Parkinson. Só têm acesso se tiverem receita médica.
“Tem que ter um médico acompanhando. No CBD não tem contraindicação, mas há casos em que ele não funciona completamente e precisa usar um pouquinho de THC, que tem algumas contraindicações. Por isso é importante médico, pesquisa, para saber o que é melhor para cada doença, cada paciente”, diz ele.
Apesar dos avanços de estudos sobre o uso medicinal da maconha, ainda faltam evidências científicas mais robustas que atestem a eficácia e a segurança dos tratamentos, segundo revisões sistemáticas da Cochrane, rede de cientistas independentes que investiga a efetividade de terapia.
Na Apepi, mais de 300 pessoas já aprenderam sobre cultivo da maconha medicinal. A associação também ministra cursos voltados a médicos sobre a prescrição da Cannabis.
Margarete diz lamentar a polêmica que envolve hoje a proposta de regulação do plantio da maconha medicinal pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que corre o risco de não sair por pressões do Planalto.
“É muito triste. Continuará deixando grande parte dos pacientes na ilegalidade”, diz ela.
O cultivo doméstico de maconha para fins medicinais é uma realidade no país, praticado clandestinamente por grupos de pais e pelos chamados cultivadores, que plantam, fazem o óleo e vendem.
As informações sobre cultivo e formas de fabricação do óleo são trocadas por meio de redes sociais ou em cursos dados por associações de pacientes, conforme a Folha apurou.
“Há mães de família da periferia que plantam para os seus filhos e correm riscos sérios de intervenção da polícia. É diferente das mães de bairros de classe média, que têm atenuantes. As mães da periferia não têm esse cobertor”, afirma Julio Américo, presidente da Liga Canábica, de João Pessoa.
Segundo ele, essas mães pobres não têm como arcar com os custos dos produtos importados à base de canabinoides, no mínimo R$ 1.200 mensais, e são empurradas para a marginalidade, comprando flores de maconha do tráfico para fabricar o óleo em casa.
“São pessoas de bem que podem ser enquadradas. Se não houver autorização de plantio, elas vão continuar plantando porque a escolha sempre será a vida do filho, que melhora muito [com o uso dos óleos de Cannabis].”
Segundo Sheila Geriz, uma das fundadoras da Liga, existe uma rede de cultivadores, pessoas que plantam Cannabis para uso próprio (recreativo ou medicinal) e repassam o excedente, a preço de custo, para os pacientes. Por meio de grupos de pacientes pelo país, a Folha localizou sete deles, mas eles não quiseram falar com a reportagem.
Sheila diz que recorre a um desses cultivadores para obter óleo de THC para ela, que sofre de artrite reumatoide, e para o filho, Pedro, 9, que tem epilepsia refratária. Ela tem autorização judicial para importar o CBD para o filho, mas não o THC.
“Estava de cama, sem me mexer de tanta dor. Com ambos, hoje faço de tudo. Pedro também melhorou muito com a associação do CBD com o THC. Não dá para demonizá-lo.”
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