A vitória das bactérias

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Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

 

by Janes Rocha - Jornal da Ciência - SBPC 

 

Além de infectar quase meio bilhão de pessoas e matar perto de seis milhões em todo mundo, a covid-19 está deixando outros estragos na saúde da humanidade, alguns ainda sequer mapeados. Um deles atingiu em cheio um dos medicamentos mais importantes da história: os antibióticos.

Na verdade, a pandemia do coronavírus potencializou um processo que já vinha se configurando discretamente há pelo menos três décadas: o uso indiscriminado de antibióticos, tanto por médicos quanto por pacientes, levou ao surgimento de bactérias super-resistentes.



O antibiótico foi descoberto pelo médico escocês Alexander Flemming (1881-1955), que isolou o primeiro, mais famoso e até hoje mais utilizado deles, a penicilina. Em 1928, trabalhando como professor do colégio de cirurgiões em Londres, Flemming estudava o comportamento da bactéria Staphylococcus aureus. Ele já havia até desistido da análise e estava para descartar as amostras quando observou que havia crescimento de um fungo (Penicillium) e que em volta desse fungo, o Staphylococcus não se expandia. Com outros estudos, a substância que matava o Staphylococcus foi purificada e batizada de penicilina.

Foi o início de uma era na qual se acreditou que a penicilina era quase um milagre, já que atacava as bactérias, sem intoxicar o organismo humano. Até então, pisar em um prego era suficiente para levar uma pessoa à morte. De fato, a penicilina salvou milhões de vidas.

A maioria dos antibióticos são substâncias produzidas por outros microrganismos (fungos ou bactérias), mecanismos de defesa encontrados na própria natureza que, por seu lado, buscam também formas de resistir aos “ataques” e sobreviver. “Quando a gente começa a usar muito antibiótico, vai fazendo uma pressão seletiva como explica o Darwinismo, ou seja, vai matando as bactérias sensíveis e as resistentes vão sobrevivendo e se espalhando”, explica a pesquisadora Ana Paula Assef, consultora técnica do Projeto Fiocruz no Ar, especialista em resistência a antimicrobianos.

Foi o que aconteceu a partir dos anos 1940-50, com a explosão do uso de antibióticos, submetendo as bactérias a uma pressão à qual elas reagiram, se tornando mais resistentes, processo mais acentuado dentro dos hospitais, especialmente em Centros de Terapia Intensiva (CTI), onde ficam os pacientes mais debilitados e onde o uso de antibióticos é intenso.

Por volta dos anos 1970-80, a indústria farmacêutica se deu conta de que as bactérias estavam derrotando os antibióticos e começaram a diminuir a produção de novas fórmulas, até praticamente parar nos anos 1990. “A indústria farmacêutica percebeu, como todo mundo, que quando a gente lança um antibiótico, logo em seguida as bactérias se tornam resistentes”, analisou Assef.

Já a partir daquela época, a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) fez vários alertas, até que em 2010 houve um surto da superbactéria chamada klebsiella pneumoniae multirresistente. Classificada por médicos em todo mundo como um dos microrganismos mais perigosos pelo alto nível da sua resistência a antibióticos e capacidade de causar infecções hospitalares, a klebsiella (produtora de KPC) vive no intestino humano e, se fora de controle, pode causar infecções sanguíneas em pacientes adultos internados em CTI, que podem se agravar para uma pneumonia e até uma sepse, com risco de óbito.



“A KPC é uma enzima, uma betalactamase que degrada a maioria dos antibióticos dessa classe, dos betalactâmicos, os mais utilizados para tratamento das infecções bacterianas, principalmente hospitalares”, explica Assef, que chefia o Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar, do Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz, e é também membro da Câmara Técnica de Resistência Microbiana, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Em 2015, a OMS lançou um plano de ação global de combate aos antimicrobianos, do qual o Brasil também participou. O plano incluiu a divulgação de uma lista, em 2017, dos patógenos prioritários multirresistentes, entre eles as bactérias de origem hospitalar.

Quando a covid-19 chegou, o quadro se agravou. Embora seja sabido que antibiótico não mata vírus, o desconhecimento sobre a doença levou, no início, os médicos a acreditarem que o mecanismo de ação do vírus da covid-19, o Sars-CoV-2, seria como o H1N1 (vírus da influenza), que se agrava com associação de infecções bacterianas. Algumas bactérias acabavam causando infecção respiratória junto com H1N1 e pioravam os pacientes.

“Por isso se usava antibiótico logo no início do H1N1. Quando veio a covid-19 todo mundo achava que ele faria esse mesmo quadro, o que justificaria a utilização de antibiótico”, explica Assef. Não só não funcionou da mesma forma como o que veio em seguida foi pior. Com a explosão da pandemia, houve um excesso de pacientes internados, os hospitais e CTIs superlotados. “Isso é um prato cheio para as bactérias que estão no hospital causarem surtos e o uso de antibióticos é essencial”.

A produção de antibióticos não diminuiu, pelo contrário, até aumentou, como se pode ver na tabela acima. O que houve foi uma diminuição na pesquisa para desenvolvimento de novos fármacos, devido à dificuldade de superar a resistência das bactérias, explicou o presidente executivo do Sindicato da Indústria Farmacêutica (Sindusfarma), Nelson Mussolini.

Segundo ele, os investimentos para criação de antibióticos são elevados, são produtos que têm efeitos colaterais graves e, para aprovação das autoridades de vigilância sanitária, é necessário provar eficácia e segurança maiores que os que já estão no mercado.

“O problema é que as coisas na indústria farmacêutica são diferentes da indústria de tecnologia eletrônica, por exemplo. O pessoal do Steve Jobs (fundador da Apple) lançou o I-Phone 13, o 14 agora e o 20 já está lá na prateleira. Para a indústria farmacêutica não, as coisas demoram a acontecer. Para você lançar um novo produto as vezes demora dez anos, que é o tempo que produtos complicados como os antibióticos podem levar”, explicou Mussolini.



Qual a saída? Ana Paula Assef afirma que seria necessário aumentar muito o investimento no desenvolvimento de novas formas de combater as bactérias. Mas enquanto isso não acontece, há outras medidas que podem ser tomadas a nível individual como, por exemplo, não utilizar antibiótico sem prescrição médica, aplicá-los somente para tratar infeções bacterianas e seguir à risca às instruções médicas de uso. “Se o médico mandou tomar por sete dias, dez dias, quatorze dias é porque isso é necessário, porque as bactérias não morrem numa tacada só”, reforça.

Do ponto de vista de políticas públicas, ela destaca as ações internas dos hospitais com as comissões de controle de infecção hospitalar (CCH) para evitar a disseminação dos surtos hospitalares, que incluem medidas de higienização dos profissionais, assepsia do ambiente, saneamento básico, controle do esgoto hospitalar. E também o controle do uso de antibióticos em animais de pecuária. “Usa-se muito antibiótico na pecuária como promotor de crescimento o que também leva a essa pressão, matando as bactérias sensíveis e as resistentes vão ficando”, alertou.

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