O Globo 
Jornalistas: Arthur Leal e Julia Lindner

 

Um surto de malária que tem causado a morte de crianças fez os ianomâmis habitantes de Roraima e Amazonas recorrerem ao inimigo: garimpeiros que trabalham ilegalmente na área indígena têm sido procurados para obtenção de ajuda e de remédios, contam líderes da etnia. A ajuda passou ser buscada depois de a Funai impedir o socorro de médicos e profissionais de saúde da Fiocruz sob a alegação de que as tribos precisam ser preservadas na pandemia de Covid-19.

“A meninazinha dela tá ruim, tá bem magrinha. Ela queria que eu desse remédio, mas eu não tenho mais, porque eles vêm aqui direto. Já acabou o meu remédio”, diz uma gravação enviada por um garimpeiro a representantes do povo ianomâmi na região de Parima, em Roraima, e obtida pelo GLOBO.
Na ocasião em que mandou o áudio, o garimpeiro havia socorrido uma mulher que estava com a filha em estado crítico por causa da malária. “Se vocês forem buscar, venham logo, porque a meninazinha tá muito ruim mesmo”, pede.
Presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Ianomâmi e Ye'kuana, Junior Hekurari afirma que essa é a pior situação sanitária que ele já presenciou.
Hekurari afirma que na quarta-feira da semana passada morreu mais uma criança de 3 anos na região, com sintomas de malária e pneumonia.
— Desde os meus 16 anos eu venho acompanhando essa luta de perto, e até agora, esse é o pior momento — acusa, pondo em dúvida medidas de ajuda anunciadas pelo governo, como dinheiro para ações de saúde e doação de cestas básicas.
Segundo Hekurari, a fome está diretamente ligada à propagação da malária.
— Começou a aparecer desnutrição porque as crianças e as demais pessoas que ficam doentes não conseguem comer.
A Secretaria de Saúde de Boa Vista informou que na segunda-feira havia 17 crianças ianomâmis internadas no Hospital da Criança. Desde o início do mês, o Ministério Público Federal e o Supremo Tribunal Federal cobram medidas que freiem a crise de saúde dos ianomâmis. Em 16 de novembro, o ministro do STF Luís Roberto Barroso exigiu que em cinco dias o governo federal esclarecesse questões como acesso a água potável, saúde, medicamentos e combate à Covid-19 no território indígena. O Ministério Público recomendou também no dia 16 que o Ministério da Saúde reestruture em 90 dias o atendimento aos ianomâmis.
De acordo com o MPF, a desnutrição já atinge 52% das crianças ianomâmis. Nas comunidades em que vivem isoladas, 80% das crianças estão abaixo do peso, o que, segundo o Ministério Público, faz com que as terras ianomâmis tenham índices de desnutrição infantil piores do que os dos países em que o problema é mais grave, no Sul da Ásia e na África subsaariana.
O MPF afirma que uma média de 133 para cada mil crianças nascidas no território morrem por conta da malária e nos últimos dois anos foram diagnosticados 44 mil casos na comunidade, o que indica que boa parte dos 28 mil ianomâmis se infectou mais de uma vez. Em 2020, os ianomâmis foram 47% de todos os casos de malária registrados em terras indígenas no Brasil.
Hekurari criticou a Funai por impedir que médicos da Fiocruz entrassem nas terras indígenas:

— Somos nós que temos que convidar a entrar em nossas terras. Não a Funai.
A Fiocruz disse que por enquanto não irá se posicionar sobre o assunto. O Ministério da Saúde informou que elabora um plano de maior combate à malária no local. Sobre a morte da criança na semana passada, segundo o ministério, “trata- se de mais um comunicado cuj o relato requer apuração, pois tem sido comum esse tipo de informação sem que as acusações de negligência sejam comprovadas”.
Segundo a pasta, já foram realizadas 16 missões em terras ianomâmis este ano. A Funai confirmou que a entrada em terras indígenas está suspensa desde 17 de março de 2020 para deter a disseminação da Covid-19.

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