Quando pensamos no uso de plantas como recurso terapêutico, há algo que nos aproxima independente de gênero, raça ou classe social: todos nós já utilizamos alguma matéria prima vegetal para a cura de algum problema de saúde. Mas, se é um fato que as plantas medicinais possuem substâncias bioativas responsáveis pelo tratamento de inúmeras doenças, por que razão algumas espécies são amplamente utilizadas por diferentes comunidades mundo afora, enquanto outras são julgadas e sentenciadas como proibidas, apesar de seu uso ser comprovadamente eficiente, além de muito lucrativo?
Segundo a OMS, 85% da população mundial faz uso de alguma fonte vegetal como remédio para tratamento de inúmeras doenças. Dados que se replicam na realidade brasileira, onde 80% da população afirma fazer uso de plantas medicinais, porém, pouco mais de 10% relatam essa prática em suas consultas médicas. A interpretação desses dados nos leva a uma discussão importante acerca do reconhecimento dos saberes tradicionais, do reforço da importância da ancestralidade como guardiã desse conhecimento e do acesso quase irrestrito a plantas medicinais.
Outro ponto revelador é a forma como a população, de maneira geral, lida com essa prática terapêutica a partir daquilo que julgam conhecer sobre o uso de plantas, sempre com muita confiança e pouca responsabilidade.
Senso comum
O primeiro ponto é que há um senso comum que reforça a ideia de que se é natural, não faz mal. E isso está longe de ser uma verdade, uma vez que plantas podem provocar efeitos tóxicos, como o excesso de cafeína em pessoas hipertensas ou com distúrbios neurológicos, em respostas farmacológicas em lugares não esperados. Como fazer uso de boldo peludo (Plectranthus barbatus) para curar os efeitos do álcool no fígado, quando na verdade sua ação ocorre no estômago. Ou interações medicamentosas com fármacos muito utilizados, como os anticoncepcionais, que podem sofrer bloqueios pelo uso concomitante com a planta de propriedades ansiolíticas Erva de São João (Hypericum perforatum), aumentando as chances de uma gravidez indesejada.
No Brasil, temos o Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (PNPMF) que, desde 2009, estabelece balizas importantes sobre o potencial uso terapêutico da matéria-prima vegetal. Elas incluem a identificação botânica, os estudos químicos e farmacológicos, a diferenciação do material botânico utilizado (se é droga vegetal, derivado de droga vegetal, fitoterápico de uso tradicional ou medicamento fitoterápico, entre outros), e ainda o armazenamento seguro, a comercialização e, claro, o desenvolvimento de pesquisas criteriosas que produzam dados robustos sobre a eficácia e a segurança das plantas como recurso terapêutico.
Outra informação relevante e que a maioria dos brasileiros desconhece é que o PNPMF prevê o uso universalizado de algumas de plantas medicinais pelo SUS. O que estimula uma cadeia produtiva, novas investigações sobre o potencial medicinal da flora brasileira e, claro, do uso sustentável de produtos fitoterápicos pela população.
O SUS disponibiliza para a população, através da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), 12 medicamentos fitoterápicos, além de incluir, na Relação de Plantas Medicinais de Interesse ao SUS (ReniSUS), uma lista de 71 espécies com comprovado potencial bioativo e que já são utilizadas como recurso terapêutico pela população.
Terapêutico ou recreativo
Um fato chama a atenção quando se pensa na capilaridade da distribuição dos ativos fitoterápicos pela estrutura do Ministério da Saúde do Brasil. Por que, mesmo com tanto conhecimento, algumas plantas permanecem proibidas de serem comercializadas e distribuídas com a chancela governamental? É claro que a referência para essa pergunta está relacionada ao polêmico uso terapêutico e/ou recreativo de maconha no Brasil.
A Cannabis sativa é uma espécie que tem, a partir de inúmeros dados científicos, a comprovação de sua enorme capacidade terapêutica positiva e do seu baixo potencial deletério em comparação a outros entorpecentes de origem vegetal lícitos como o álcool e o tabaco. E essa informação é relevante uma vez que suscita uma importante discussão sobre a descriminalização do uso de uma planta que apresenta atividades biológicas fundamentais para o tratamento de inúmeras comorbidades neurológicas, cardiovasculares e motoras, mas que segue sendo criminalizada.
Há projetos de produção e distribuição da planta no Brasil, realizada por uma empresa privada, a Ease Labs Pharma, que já tem garantido o fornecimento de Cannabis para o SUS no Estado de São Paulo a partir de maio de 2024. E isso se deve ao aumento considerado de judicializações e ao custo do governo para autorizar o uso terapêutico dessa planta para pacientes que, em um primeiro momento, comprovem serem portadores das síndromes de Dravet, Lennox-Gastaut e esclerose tuberosa.
Agora, a partir desses dados apresentados, não resta dúvidas de que temos um lugar de destaque a ser ocupado quando pensamos em utilização racional e sustentável de fontes vegetais como recursos terapêuticos. E, dando suporte a isso, somos detentores de múltiplos saberes (tradicionais e científicos) sobre as propriedades medicinais das plantas.
Conseguimos, portanto, aliar um fato único no mundo: A expertise sobre o conhecimento acerca de produtos naturais vegetais, a partir da excelência dos pesquisadores, apesar dos recursos escassos, do conhecimento tradicional inestimável, da imensa aceitação da população ao uso de plantas medicinais, de uma legislação robusta que visa a preservação e a utilização sustentável de nossos recursos e de uma rede de distribuição de plantas e medicamentos fitoterápicos de forma técnica e responsável.
Diversidade Mundial
O Brasil é o país mais megadiverso do mundo. A flora brasileira conta com quase 50 mil espécies nativas, sendo 50% delas endêmicas (ocorrem exclusivamente em regiões específicas), distribuídas por seus biomas, segundo os dados do projeto Flora Brasil de 2020. O que nos coloca no topo da diversidade mundial: abrigamos cerca de 20% das espécies existentes no mundo.
Não nos falta quase nada para que nos tornemos a grande referência mundial nesse tema. Apenas uma compreensão maior, da população e dos legisladores de que aspectos comportamentais e religiosos não deveriam comprometer o imenso e comprovadamente seguro potencial farmacológico de plantas que habitam o planeta Terra há muito mais tempo que a nossa jovem humanidade.
Por Viva Bem UOL - *Marco Rocha é pesquisador e professor da Universidade Estácio de Sá. Este artigo foi republicado do site The Conversation sob licença creative commons. Leia o artigo original aqui.
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