Aposta em nova era contra câncer de ovário

por Correio Braziliense
Jornalista: Paloma Oliveira

01/10/19 - Durante décadas, não houve evolução no tratamento do câncer de ovário, o mais letal do sistema reprodutivo feminino. Até hoje, a intervenção padrão consiste em uma cirurgia de grande porte, combinada com quimioterapia. Porém, um novo cenário surge para beneficiar pacientes de uma doença que, no Brasil, afeta seis em cada 100 mil mulheres e que, por não ter diagnóstico precoce, costuma ser identificada em estágios avançados.

Durante o congresso anual da Sociedade Europeia de Oncologia Medica (Esmo), três estudos mostraram que mirar em uma enzima chamada Parp representa uma nova era no tratamento desse tipo de câncer. Embora a quimioterapia e a cirurgia continuem necessárias, medicamentos que inibem a ação da substância aumentam a sobrevida sem progressão da doença para um grupo expressivo de pacientes. Na avaliação de especialistas, essas drogas têm potencial para mudar a prática clínica.

No ano passado, também no Esmo, um estudo indicou que, concluído o ciclo de quimioterapia, o uso da substância olaparibe combinada com a droga bevacizumabe aumentou significativamente o tempo de remissão do câncer de ovário em pacientes com mutações BRCA. O medicamento reduziu em 70% o risco de progressão da doença ou de morte, comparado ao grupo placebo, que recebeu a terapia padrão, sem a adição da substância.

O resultado dessa pesquisa fez com que muitos países aprovassem o olaparibe como tratamento de primeira linha para mulheres com as variantes BRCA. O Brasil foi o primeiro, em fevereiro passado. Agora, um dos estudos apresentados no Esmo demonstrou que esse tratamento pode beneficiar um grupo ainda maior de mulheres.

A pesquisa internacional teve participação de 806 pacientes, inclusive brasileiras, nos estágios III e IV de câncer de ovário e incluiu pessoas com e sem a mutação, com resposta parcial ou total à quimioterapia. No fim, todos os grupos que receberam o olaparibe combinado ao bevacizumabe tiveram uma remissão maior do que aqueles em que o tratamento seguido foi o padrão.

“A seleção de pacientes não se restringiu ao sucesso ou não da cirurgia ou ao fato de se ter ou não a mutação BRCA. Então, as participantes representam a população geral das mulheres com câncer de ovário avançado”, afirmou Isabelle Ray-Coquard, principal autora do estudo e pesquisadora da Universidade Claude Bernard, de Lyon.

Em uma coletiva de imprensa, a cientista destacou que, embora todas as participantes tenham sido beneficiadas, o olaparibe foi mais eficaz, comparado ao placebo, nos subgrupos de mulheres com a mutação BRCA e naquelas com um defeito no DNA chamado deficiência de recombinação homóloga (HRD, sigla em inglês). “É a primeira vez que vemos esses resultados em pacientes HRD sem a mutação BRCA. Então, um número muito maior de pacientes será beneficiado”, frisa.

Para Ana Oaknin, pesquisadora do Instituto de Oncologia Vall d’Hebron de Barcelona, que não participou do estudo, esses resultados são um “significativo passo a frente” no tratamento. “O principal objetivo no câncer de ovário é evitar a volta da doença depois da terapia de primeira linha porque, de outra forma, a probabilidade de cura é bem baixa. A combinação do bevacizumbe e do olaparibe como terapia de manutenção deve se tornar o novo padrão de tratamento de pacientes com câncer ovariano avançado.” Ela observa que uma limitação do estudo foi não incluir mulheres sem qualquer resposta à quimioterapia, um grupo que, segundo Oaknin, porém, e pequeno.

Também tendo a enzima Parp como alvo, um estudo que testou a eficácia da substância niraparib em 733 mulheres com câncer de ovário avançado concluiu que a droga beneficiou pacientes com e sem as mutações BRCA, além daquelas com deficiência de recombinação homóloga (HRD). Essas últimas foram as que apresentaram melhores resultados, com 57% menos risco de progressão da doença, comparado ao grupo placebo.

“Essas descobertas sugerem que os médicos devem considerar o niraparib como opção de tratamento para pacientes com câncer de ovário avançado, depois de completarem a quimioterapia de primeira linha”, disse Antonio Gonzáles Martín, da Universidade Clínica de Navarra, presidente do Grupo Espanhol de Pesquisa de câncer ovariano e principal autor do artigo, apresentado no Esmo e publicado no New England Journal of Medicine.

Efeitos colaterais

Com 1.100 pacientes em estágio avançado que foram submetidos à quimioterapia, o terceiro estudo divulgado no congresso europeu também encontrou benefícios no tratamento com uma substância inibidora da enzima Parp, o veliparibe. Na pesquisa, as participantes foram divididas em três grupos: veliparibe junto da quimioterapia e sozinho como manutenção, a substância com químio seguida por placebo, e controle, que só recebeu a químio.

No primeiro caso, houve “benefícios significativos”, segundo Robert L. Coleman, da Universidade de Houston e principal pesquisador do estudo. Ele alertou, porém, que usar apenas o veliparibe com a químio não trouxe resultados positivos, além de aumentar efeitos colaterais, como fadiga e anemia.

Convidada pela organização do congresso a comentar os três estudos, Anna Oaknin, do Instituto de Oncologia Vall d’Hebron, disse que a indicação da classe de medicamentos inibidores da enzima Parp como tratamento de primeira linha é um “marco histórico” para os pacientes. “Depois de décadas estudando diferentes abordagens de quimioterapia, é a primeira vez que temos remissão prolongada. Esperamos que continuemos a melhorar os resultados em longo prazo.” Embora os resultados tenham sido semelhantes, ela observa que há diferenças entre os três estudos e que cabe aos médicos e aos pacientes escolherem a melhor opção, dependendo de cada caso.

"Depois de décadas estudando diferentes abordagens de quimioterapia, é a primeira vez que temos remissão prolongada. Esperamos que continuemos a melhorar os resultados em longo prazo.”, diz Anna Oaknin, pesquisadora do Instituto de Oncologia Vall d’Hebron


Três perguntas para Angélica Nogueira, presidente do Grupo Brasileiro de Tumores Ginecológicos

Por que é tão difícil diagnosticar o câncer de ovário precocemente?
Angélica Nogueira: Esse é um grande desafio, a maioria das pacientes com câncer de ovário chega ao diagnóstico com a doença avançada, já disseminada dentro do abdômen. Isso porque o câncer de ovário não tem sintomas específicos da própria doença, e a evolução é muito rápida. Então, por exemplo, a paciente pode apresentar barriga distendida, alteração na digestão, queixas urinárias ou intestinais. São queixas mais ligadas a outros órgãos, e isso atrasa o diagnóstico porque, muitas vezes, até para médicos, é difícil a associação. E é um tumor mais raro que outros, como o de mama, por exemplo.

Hoje, qual é a realidade do tratamento?
Angélica Nogueira: O tratamento clássico do câncer de ovário nas últimas décadas mudou muito pouco. Ele se baseia em uma cirurgia bastante extensa, combinada com quimioterapia. Em 2011, foram apresentados alguns estudos que mostraram que usar uma classe de medicações chamadas inibidores de angiogênese melhora o controle da doença na paciente em estágio mais avançado. E no ano passado, também no congresso Esmo, foi apresentado o inibidor de Parp olaparibe para o subgrupo de pacientes com mutações BRCA, com um ganho muito significativo de sobrevida livre de progressão. A grande mudança que aconteceu agora no Esmo 2019 é que os três subgrupos de paciente — com mutações BRCA, com deficiência de recombinação homóloga e sem deficiência de recombinação homóloga — foram beneficiados com inibidores de Parp.

Quais os maiores avanços da área no congresso Esmo?
Angélica Nogueira: Em relação ao câncer de ovário, saímos do Esmo 2019 com significativos avanços. Os estudos reforçam o inibidor de Parp como tratamento de primeira linha, expandem a coorte de pacientes não só para as mutadas em BRCA, a combinação com o inibidor de angiogênese foi eficaz e segura, com um ganho robusto, independente de mutação. Vivemos uma mudança de paradigma com ganho significativo de sobrevida livre de progressão.

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