Valor Econômico
Colunista: Iran Gonçalves Jr*
01/11/19 - A utilização de recursos de informática no cuidado do paciente é anunciada como uma nova realidade da qual I já podemos obter os maiores benefícios. A capacidade de analisar grandes conjuntos de dados e desvendar padrões de comportamento de variáveis clínicas promete alterar o diagnóstico, o tratamento e a própria evolução das doenças. Será isso mesmo?
O uso intensivo da informática é comumente descrito como “inteligência artificial”, expressão que faz supor algo misterioso. Lembra o comentário de Arthur C. Clarke (“2001 - Uma Odisséia no Espaço”): “Qualquer tecnologia suficientemente avançada parece ser mágica”.
Expressão mais apropriada parece ser “inteligência de máquina”, que descreve tecnologias capazes de analisar grandes bancos de dados com diferentes ferramentas, como algoritmos, redes neurais, métodos de modelagem estatística. Essas análises permitem encontrar padrões desconhecidos ou evidenciar determinadas associações de variáveis clínicas e/ou laboratoriais que auxiliam a prevenção de ocorrência de eventos. Não há mágica, há maior eficiência.
Essa capacidade de observar e relacionar é a base da produção do conhecimento médico. Mesmo antes da metodologia científica, que se desenvolveu no Ocidente a partir do século XIX, a observação cuidadosa permitiu o avanço da medicina. Não se acertava sempre, mas a descoberta do poder curativo de plantas, minerais e produtos de origem animal ainda é fonte importante de ideias para a pesquisa médica e farmacológica.
Esse avanço não foi linear e dependeu das condições tecnológicas e sociais de cada época. Com a chegada dos computadores, a análise de dados passou a ser feita de modo mais rápido e eficaz que a capacidade do cérebro humano. Uma vez programado, um computador pode comparar um número quase infinito de tomografias e buscar nuanças de imagem que passam despercebidas ao examinador humano, em pouco tempo e sem perda de dados.
Essas nuanças podem representar a possibilidade de um diagnóstico mais precoce. Pode-se realizar a análise de informações de diferentes fontes, diversos exames de imagens (ultrassonografias, tomografias, ressonâncias), compará-los com achados de exames de laboratório (sangue, urina) e verificar se surgem padrões característicos de alguma doença não observados.
As associações encontradas precisam ser testadas em outras populações para verificar se o que foi achado tem importância clínica ou é apenas correlação sem causa e efeito. Esse é um passo crucial para a validação dos dados. Por exemplo, pode-se encontrar uma associação entre o nível de glicose no sangue e uma imagem de câncer no estômago. Uma análise descuidada poderia sugerir que a glicose aumentada é marcadora desse tipo de câncer, que há uma relação de causa e efeito, logo toda vez que encontramos glicose alta devemos procurar o câncer. Uma análise mais cuidadosa evidenciaria que pacientes com câncer gástrico utilizam em seu tratamento medicamentos que elevam a glicose—não há, portanto, relação causai, foi apenas uma correlação encontrada.
Esse tipo de armadilha é frequente com a análise de bancos de dados muito grandes, onde é possível cruzar milhares de variáveis por meio da utilização de poderosos recursos de informática. Por vezes é muito difícil decidir a real relevância do dado encontrado.
Outras dificuldades dizem respeito à análise de bancos de dados muito diversos entre si, por exemplo, registros de hospitais com distintas populações atendidas, definições de doenças que mudam com o tempo, técnicas de exames de laboratório diferentes entre si. Qualquer variável pode ser ajustada, mas o processo remete a uma metáfora culinária: na tentativa de se ajustar o sal, pode perder-se o sabor do prato.
A estrutura dos algoritmos criados para a análise de dados também é um desafio constante. Um artigo publicado na revista “Science”, em 2019, analisou um algoritmo líder de mercado nos EUA, com milhões de pacientes cadastrados, utilizado para calcular perfis de risco de pacientes para empresas seguradoras. Esse perfil de risco é utilizado para se calcular quanto de recurso financeiro deve ser alocado para o tratamento de cada indivíduo.
Os autores descreveram que o algoritmo encontrava os mesmos valores de risco para pacientes negros e brancos que recebiam, portanto, a mesma estimativa de custo de tratamento. Essa informação não fazia sentido, pois, para as mesmas variáveis clínicas, os pacientes negros apresentam pior evolução devido a um histórico de maior pobreza, maior número de doenças crônicas, menor escolaridade, menor acesso aos sistema de saúde—portanto, para as mesmas variáveis clínicas, pessoas negras são mais doentes que as pessoas brancas e necessitam de mais recursos para um mesmo tratamento.
Ao obterem acesso à estrutura do algoritmo, os pesquisadores descobriram que não havia um campo “raça” na entrada de dados. Após a inclusão da raça na análise dos dados, foi observado que os pacientes negros necessitavam de um acréscimo de até 47% nas despesas com o tratamento para atingirem os mesmos resultados que os pacientes brancos. Os resultados foram confirmados pela empresa que desenvolveu o algoritmo em uma base de dados de mais de 3,6 milhões de pacientes. Empresa e pesquisadores estão trabalhando na correção do programa.
Voltando à questão do início deste texto, acredito que a resposta é sim, o uso intensivo de informática é benéfico para o avanço do conhecimento médico, mesmo conhecidos todos os problemas descritos. Contudo, o caminho não é tão simples. Foi muito mais fácil criar um computador com capacidade de vencer um campeão mundial de xadrez. As regras do jogo eram claras e o software era capaz de prever a repercussão de qualquer movimento das peças.
Na medicina, a informação é muitas vezes incerta, a importância de cada dado varia com a fase do tratamento e com cada paciente. A criação de modelos computacionais é difícil porque pressupõe que todas as variáveis são conhecidas, e isso não é a realidade, ou seja, as regras mudam durante o jogo. Raros médicos são contra a utilização dos recursos de informática, mais raros são os favoráveis aos pacientes serem considerados meros “inputs” de algoritmos.
(*) Iran Gonçalves Jr é médico, escreve neste espaço mensalmente
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