Autores: Rodrigo T. Calado e Dimas Tadeu Covas*
27/10/19 - Nas duas últimas décadas, o tratamento do câncer deu grandes passos em direção à cura pela aplicação do conhecimento da ciência em imunologia e oncologia —a imunoterapia. Essa história de sucesso é bem ilustrada pelos avanços no tratamento de neoplasias hematológicas —leucemias e linfomas.
As primeiras tentativas de aplicação dessa modalidade foram feitas há várias décadas com o transplante de medula óssea, em que as células do sangue, incluindo as do sistema imunológico de um doador saudável, são transplantadas em paciente com leucemia. Assim, as células transplantadas, em especial os linfócitos T, são capazes de reconhecer as células tumorais e destruí-las. O transplante de medula óssea melhorou em muito a chance de cura de pacientes com leucemia.
Por outro lado, a demonstração de que o transplante do sistema imunológico é eficaz na destruição do tumor, mas pouco específico, estimulou vários médicos e cientistas a aperfeiçoar a intensidade e a especificidade desse ataque imunológico contra o câncer, poupando células e órgãos saudáveis.
Esse intenso trabalho de pesquisa científica resultou no uso de anticorpos monoclonais (derivados de uma única célula) que reconhecem especificamente as células doentes, poupando a grande maioria das células normais. Anticorpos são proteínas produzidas pelos linfócitos B e que reconhecem especificamente um alvo a ser combatido. São os anticorpos que nos defendem de infecções virais, por exemplo.
Cientistas produziram em laboratório anticorpos que reconhecem um alvo específico e presente quase exclusivamente na célula da leucemia ou do linfoma. Esses anticorpos foram adicionados à quimioterapia convencional, melhorando significativamente os índices de desaparecimento do linfoma —e, mais, reduzindo muito a chance de ele reaparecer depois de vários anos. Ou seja, aumentando a chance de cura. Mais ainda, o uso de anticorpos monoclonais diminui a necessidade de quimioterapia convencional e, consequentemente, os seus efeitos colaterais, o que melhora muito a qualidade de vida do paciente.
Agora, mais um passo importante foi dado na utilização da imunoterapia para derrotar o câncer. Conseguimos combinar essas duas estratégias: retiramos os linfócitos T do paciente e, em laboratório, os modificamos geneticamente para que reconheçam somente as células do linfoma ou da leucemia da mesma forma que os anticorpos. Essa tecnologia é chamada de CAR-T, de “linfócitos T com receptor de antígeno quimérico”, em inglês.
As vantagens são muitas. Primeiro, não há necessidade de um doador, pois as células modificadas são do próprio paciente. Segundo, os linfócitos, que são células vivas, ao encontrar o seu alvo, ou seja, o câncer, se multiplicam rapidamente no organismo, amplificando assim a sua capacidade de combatê-lo. E, terceiro, permanecem no organismo do paciente por vários meses ou anos, “vigiando” qualquer tentativa das células doentes de reaparecerem.
Como esses linfócitos geneticamente modificados reconhecem especificamente um alvo, também diminui o risco de essas células atacarem outros órgãos saudáveis. Finalmente, tendo em vista a intensidade da resposta dessas células, não há a necessidade de uso de quimioterapia convencional.
Essa tecnologia foi inicialmente desenvolvida nos Estados Unidos e testada em humanos na Universidade da Pensilvânia e no Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos. Há dois tipos de modificação genética de linfócitos aprovados para o uso em pacientes. Entretanto, esse tratamento norte-americano ainda é muito caro e pouco acessível à maioria dos pacientes.
Em caso pioneiro, conseguimos tratar no Brasil um paciente com linfoma utilizando essa tecnologia desenvolvida em laboratórios de universidade brasileira a um custo muito menor que o do tratamento nos EUA. Ainda é cedo para sabermos quais pacientes podem se beneficiar dessa tecnologia e novos estudos clínicos, conduzidos no Brasil, são necessários para que, em um futuro próximo, esse tipo de tratamento possa estar disponível a pacientes pelo Sistema Único de Saúde.
O desenvolvimento desta tecnologia de células CAR-T, inovadora no nosso meio, representa, além de grande avanço científico, um enorme salto econômico e social. O Brasil se equipara, nesse terreno, aos países mais desenvolvidos. Resta agora aproveitar a janela de oportunidade que se abre.
(*) Rodrigo T. Calado é Médico hematologista e professor associado da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP
(*) Dimas Tadeu Covas é Médico hematologista e professor titular da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP
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