O Globo
Jornalistas: Dimitrius Dantas e Melissa Duarte
05/10/21 - Levantamento realizado pelo GLOBO indica que pelo menos oito estados apresentam uma diferença de 2,4 milhões de doses entre o número de vacinas de AstraZeneca aplicadas e recebidas para primeira dose. Os dados, obtidos por meio das pautas de distribuição desde o início da campanha e do vacinômetro do Ministério da Saúde, apontam que, em média, esses locais usaram 11% de imunizantes a mais do que o número de doses recebidas para iniciar a imunização.
Dessa forma, os números indicam que mais pessoas podem ter sido vacinadas do que o planejado pela pasta, diferença que pode ter causado o desabastecimento de AstraZeneca em alguns estados. Do total, 60% corresponde a São Paulo, que vacinou 14 milhões de pessoas com AstraZeneca, apesar de ter recebido 12,5 milhões de doses para este fim, de acordo com as pautas de distribuição.
Segundo o levantamento do GLOBO, Goiás, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rondônia, São Paulo e Tocantins apresentaram essa discrepância nos números. Os números são o centro de uma disputa entre o Ministério da Saúde e governos estaduais, que relatam desabastecimento de AstraZeneca nas últimas semanas. A pasta afirma que essa disparidade de 2,4 milhões de vacinas é o que causou a falta do imunizante em alguns locais. Já as secretarias, por sua vez, afirmam que o ministério não cumpriu o cronograma esperado de entregas.
Coordenadora do Programa Nacional de Imunizações (PNI) de 2011 a 2019, Carla Domingues elenca quatro motivos principais para as distorções. Entre eles, estão o uso de 10% de vacinas que o ministério manda a mais para compensar perdas, possíveis erros de digitação — na quantidade de doses ou no registro de vacina da Pfizer como se fosse AstraZeneca, por exemplo —, na administração de segunda dose como primeira e no abandono vacinal na segunda dose, que pode acabar destinada à xepa.
— Tudo isso tem que ser checado, são hipóteses. É muito complexa uma campanha como essa. O município tem que se adequar à própria realidade — afirma a epidemiologista, que exemplifica: — Num país continental como o nosso, com a diversidade como essa, tendo que fazer duas doses, o frasco tem que ser usado em 6 horas... se a pessoa não aparece (para a segunda dose), você tem que otimizar a vacina (destinando à xepa), para que você não tenha perda.
Um gestor estadual ouvido em caráter reservado pelo GLOBO reitera a hipótese de que distorção quanto à vacina da AstraZeneca foi causada pelo fato de estados terem utilizado parte do estoque de segunda dose para acelerar a aplicação da primeira. A estratégia foi defendida por especialistas ao longo do ano como forma de estender a imunidade parcial contra a Covid-19 a mais pessoas.
Nessa esteira, a falta de imunizantes levou estados a completarem o esquema vacinal dos que receberam a primeira dose de AstraZeneca com vacinas da Pfizer, a chamada intercambialidade de vacinas. É o caso de São Paulo, que chegou a ficar sem estoque do imunizante em 10 de setembro. A cidade do Rio também autorizou a mistura diante do desabastecimento.
Os números foram obtidos por meio da consulta às pautas de distribuição do Ministério da Saúde. Esses documentos são enviados aos estados e ao Distrito Federal com instruções sobre o uso de determinados lotes de vacinas. Cada um deles indica, por exemplo, o quantitativo enviado a cada estado, o fabricante e o uso recomendado dentro do PNI, isto é, se deve ser utilizado para primeira ou para segunda dose.
O GLOBO somou, para cada estado, as doses enviadas em cada pauta de distribuição para aferir quantas doses foram enviadas para uso como primeira dose e como segunda dose. Depois, cruzou esse número com o de doses distribuídas e aplicadas para cada estado a partir dos microdados disponibilizados pela pasta.
Outra hipótese para a disparidade verificada pode estar nos bancos de dados, com problemas na inserção de informações:
— Bases de dados nacionais e novas sempre tem um risco de terem erros de integração entre sistemas, o que chamamos de interoperabilidade, ou mesmo de digitação, o que faz com que os dados inseridos não representem fielmente a realidade. Isso se descobre através de auditorias periódicas nos dados, confrontando com registros externos, para ter uma ideia se tudo está batendo certinho — analisa o cientista de dados e coordenador da Rede Análise Covid-19, Isaac Schrarstzhaupt.
Procurados, os oito estados apresentaram argumentos diferentes. Pernambuco, por exemplo, apontou que a diferença foi causada porque os frascos podem render além das doses indicadas. São Paulo, por sua vez, afirmou que o ministério falhou diversas vezes nas entregas programadas e frustrou a dinâmica de vacinação do Brasil pois o estado atuava com base nas perspectivas de entregas publicadas pela pasta. Já o Rio Grande do Norte alegou que a diferença pode ser causada por demora na inserção dos dados.
Responsável por comprar e distribuir imunizantes às unidades federativas, a pasta tem afirmado que muitos estados utilizaram para primeira dose remessas indicadas para a vacinação de segunda dose. Pernambuco, por exemplo, segundo o levantamento do GLOBO, recebeu 2,2 milhões de vacinas para primeira dose de AstraZeneca. Entretanto, segundo dados do ministério, o estado vacinou com primeira dose do imunizante 2,5 milhões de pessoas.
“A pasta reforça que não garantirá doses para estados e municípios que adotarem esquemas vacinais diferentes do que é recomendado no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 (PNO). Alterações no plano podem influenciar na segurança e eficácia das vacinas e podem, ainda, acarretar na falta de doses para completar o esquema vacinal na população brasileira”, informou à reportagem.
Questionadas pelo GLOBO, as secretarias estaduais de Saúde de Goiás, do Paraná e de Rondônia não se manifestaram até o fechamento deste texto.
Como as doses são distribuídas
Ao todo, já houve 55 pautas de distribuição de vacinas desde janeiro, quando o Brasil iniciou a campanha de imunização com CoronaVac. Depois, vieram AstraZeneca, Pfizer e Janssen. Na etapa seguinte, o ministério, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), que formam o comitê tripartite, se reúnem para alinhar as estratégias de distribuição.
A decisão é divulgada num informe técnico, que orienta a imunização por grupos prioritários ou de idade, conforme o Plano nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 (PNO). Além disso, divide as vacinas entre primeira e segunda dose, além da de aplicação única. A quantidade enviada deve ser proporcional à população de cada unidade federativa.
É nesse momento que as doses são liberadas para distribuição para os estados, onde devem chegar em até 48 horas. Depois, cada unidade federativa é responsável para encaminhá-las aos municípios, no prazo de até uma semana.
Comentários