Autorregulação e regulação da indústria farmacêutica

Enquanto há quem reclame da economia, a indústria farmacêutica não vê crise no mercado brasileiro. Estima-se que até 2021 o país ocupará a quinta posição no ranking de maiores mercados industriais farmacêuticos, o que nos rendeu o apelido de país “farmergente” ao lado de outros dos BRICs. Alguns explicam a receita do sucesso apontando questões como o aumento na expectativa de vida da população, uma maior preocupação com a saúde, o avanço da biotecnologia. Mas qualquer que seja a explicação para o crescimento pouco se fala sobre a pressão que grandes empresas farmacêuticas exercem sobre o mercado para atender seus interesses organizacionais.

As práticas comerciais por trás do sucesso nas vendas do setor e as estratégias, por vezes nada ortodoxas, voltadas à promoção e proteção das marcas e produtos são dirigidas a três públicos principais: aos médicos, aos farmacêuticos, e ao consumidor. Desmembrar as vertentes de marketing que levam à recepção de certos medicamentos que nem sempre se amoldam à doença tratada e para os quais não há evidência empírica de eficácia possibilita entender melhor o fenômeno e pensar, em perspectiva comparada, qual o papel da regulação.

Marketing Off-Label

As formas como as empresas farmacêuticas promovem a si e os seus produtos são diversas e, frequentemente, muito sutis. Variam desde o marketing direto através de anúncios na televisão, em revistas e nas redes sociais até visitas de representantes dos laboratórios farmacêuticos aos consultórios, podem se dar na forma de incentivos financeiros à pesquisa, patrocínio de congressos médicos e promoção de cursos à profissionais da saúde. Um exemplo discutível sobre o ponto de vista ético, que já foi objeto da CPI dos Medicamentos instaurada em 2000, é a prática da “bonificação”, que consiste em oferecer um benefício ao balconista, ou à própria farmácia, toda vez que vender o medicamento de um determinado laboratório quando esta comprar o produto.

A promoção de medicamentos é muitas vezes necessária para as empresas farmacêuticas devido às enormes somas gastas no desenvolvimento de medicamentos. Embora o marketing esteja dentro dos limites legais da atividade econômica, em alguns casos a fronteira da legalidade é ultrapassada, como quando se promove um medicamento para fins não autorizados pelos reguladores.

Nessas hipóteses fala-se em marketing off-label, prática de publicidade vedada já que o consumo inadequado de medicamentos ameaça essencialmente a segurança do paciente.

Segundo a última regulamentação da Anvisa sobre publicidade no setor, a Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) número 96 de 2008, os medicamentos vendidos sem receita, como analgésicos e ácidos para indigestão, são os únicos liberados para divulgação ao grande público. Anúncios daqueles que exigem prescrição médica, responsáveis por cerca de 70% do faturamento da indústria no Brasil, só podem ser direcionados aos profissionais da área da saúde.

A existência de regulação não garante, por si só, que a conduta será em conformidade com a regra. Pesquisadores realizaram estudo da publicidade de drogas psicoativas nos Estados Unidos, Reino Unido e Brasil e concluíram que os anúncios brasileiros “omitiram informações sobre restrições de uso, tais como contraindicações, reações adversas, interações, avisos e precauções, e que tais informações estavam presentes em anúncios americanos e britânicos”. (Mastroianni et. al, 2005).

Pesquisas empíricas demonstram que o marketing off-label de fato influencia as práticas de prescrição dos médicos e, portanto, em última instância, o uso de drogas (Wazana 2000).

Ao contrário do Brasil, a abordagem direta e irrestrita de potenciais consumidores nos EUA é legal até mesmo para medicamentos prescritos. Na contramão em relação a ampla maioria dos países, ao lado apenas da Nova Zelândia, no mercado norte americano é possível que as empresas farmacêuticas promovam seus produtos em comerciais de TV ou através de anúncios em mídia impressa.

No entanto, se, no caso do marketing off-label, as promessas publicitárias se referem a fins não-autorizados (oficialmente), cabe ao cliente farmacologicamente inexperiente verificar ele mesmo a aprovação ou eficácia real ou confiar nas promessas das empresas. O orçamento de marketing da indústria farmacêutica americana foi de US$ 9,6 bilhões em 2017. No entanto, muito mais expressivo é o gasto em cortejar os responsáveis por intermediar os medicamentos e o público: os médicos.

Em 2016, os gastos com marketing para profissionais de saúde foram de US$ 20,3 bilhões.

Marketing Off-Label como prática comum

A Pfizer não é a única empresa farmacêutica com disputas judiciais: o comportamento desviante é uma prática generalizada e institucionalizada no campo organizacional da indústria farmacêutica mundial. Em média, a indústria farmacêutica tem três vezes mais violações legais do que outras indústrias (Clinard et al., 1979). O caso aqui apresentado é um exemplo de um problema sistemático na indústria farmacêutica.

Quase todos os fabricantes de medicamentos conhecidos, como a Eli Lily, a Novartis e a Johnson & Johnson celebraram pelo menos um acordo com o Departamento de Justiça dos EUA para a comercialização off-label no passado.

Qualquer pessoa nos EUA que não tenha certeza sobre como um médico é apoiado financeiramente pela indústria farmacêutica pode descobrir sobre isso em um mecanismo de busca fornecido pelo governo (https://openpaymentsdata.cms.gov/).

No Brasil, não existe uma plataforma de monitoramento ou divulgação de dados sobre o fenômeno, e a adoção de uma lei para tornar públicos os pagamentos feitos aos médicos já foi sugerida, mas não ganhou concretude.

A força do ramo farmacêutico e sua influência sobre o mercado são incontroversos por aqui. Seus investimentos em publicidade colocam o segmento entre os maiores, sendo que entre os top 10 que mais investiram em mídia figuram 6 empresas atuam no segmento farmacêutico. Se considerarmos que o portfólio desse segmento não se limita a medicamentos de uso restrito, mas engloba outros componentes como suplementos alimentares para emagrecimento ou ganho de massa, populares por serem administrados sem prescrição, a promoção off-labelnão é novidade no Brasil.

Apesar das diferenças com o sistema de responsabilização criminal e civil norte-americano, excessos da publicidade de medicamentos podem ser encontrados entre os casos levados ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), que atua na fiscalização do regulamento ao lado da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

No ano passado, 16,7% dos processos instaurados eram do setor medicamentos, cosméticos e serviços para saúde empresas da categoria de apareceram no pódio das decisões denegatórias. Em 2017, quatro campanhas da Hypermarcas foram sustadas ou advertidas, três delas referentes ao Benegrip, por ter sido anunciado como “aprovado em casos de Dengue, Chikungunya e Zika”.

Pelo mesmo motivo o concorrente Tylenol, da Johnson & Johnson, ensejou igual decisão do conselho. A Natufibras foi “condenada” pela publicidade enganosa do produto Gran Sênior, apresentado como vasodilatador e estimulante sexual, por não existir base científica para as afirmações. A empresa alega que por tratar-se de suplemento vitamínico o registro sanitário fica dispensado. Outros 2 comerciais foram sustados: do Abstem, vendido com a promessa ajudar a inibir o consumo de bebidas alcoólicas e do creme Milagre Super Lift, que diz causar rejuvenescimento da pele.

Reclamações de propaganda nas redes sociais são cada vez mais comuns entre as queixas que chegam ao Conar. Esse apanhado dialoga com aqueles que apontam o peso da indicação feita por de formadores de opinião, endossando medicamentos após recebimento de brindes ou mediante relação contratual. Tanto quanto uma propaganda veiculada, uma recomendação de uso em postagem, ainda que removida com a resolução de um caso no Conar, não pode ser “apagada” da cabeça daqueles que foram expostos a ela. Igual crítica sobre a temporalidade já apareceu em pesquisas sobre os efeitos limitados das punições por off-label marketing nos EUA. (Wang et. al, 2017)

Em contraste com o marketing off-label, o uso off-label, ou seja, a aplicação de remédios para fins que não constam no registro da droga é permitida.

Medicamentos usados na pediatria frequentemente não passam por testes clínicos: estudo recente mostrou que 95,5% dos bebês no Brasil receberam pelo menos uma droga off-label, enquanto nos EUA, 72% dos recém-nascidos receberam pelo menos um medicamento desse tipo (Gonçalves et al. 2017).

Em que pese a prescrição médica de uma droga em tratamentos que não constam no registro possa salvar a vida de pacientes, equivale a experimentar fármacos na população, sendo que a obrigação de realizar testes é das empresas do ramo. Inclusive, dificuldade de conduzir pesquisas sobre medicamentos para a faixa etária pediátrica se deve aos baixos retornos financeiros da indústria farmacêutica. A cautela deve ser ainda maior quando a decisão é transferida diretamente ao consumidor.

Um exemplo no Brasil é o uso da fluoxetina, um antidepressivo, para controle de apetite, apesar das reações adversas incluírem tendências suicidas, ansiedade e hemorragia abdominal. (Carlini et. al, 2009)

Especialistas apontam que num cenário onde o número reduzido de campanhas de conscientização sobre as consequências da má utilização de medicamentos se soma à crescente exposição do público à influência da internet e mídias socais, uma maior regulação do mercado seria necessária.

De acordo com o ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão, assistimos a um “processo de medicalização que se afasta da dimensão ética, política e sanitária” sendo que a permissividade publicitária fabrica uma consciência em saúde na qual as famílias aumentam seus gastos com medicamentos sem eficácia comprovada e expõem-se a efeitos adversos potencialmente graves.

Podemos aprender com o caso americano, mas adaptar as soluções à realidade da oferta e demanda do setor no Brasil é preciso para encontrar mecanismos de regular as práticas da indústria farmacêutica que escapam de regras formais e exercem influência indevida, na perspectiva da proteção da saúde pública e da boa-fé, sobre profissionais e consumidores. Sem um aperfeiçoamento normativo, e enquanto os medicamentos forem vistos como bens de consumo apartados do fim terapêutico, as possibilidades de aumentar as vendas ao custo do interesse público devem continuar vastas.

LAURA SOPHIA HAUCK – Socióloga e mestranda em Sociologia pela Universidade de Heidelberg, é pesquisadora do grupo Estudos de Crimes Organizacionais no Max-Weber-Institut für Soziologie.

MARIA EUGENIA TROMBINI – pesquisadora do grupo Estudos de Crimes Organizacionais e integra o projeto Crime Corporativo e Corrupção Sistêmica no Brasil (DFG-FAPESP), no Max-Weber-Institut für Soziologie. Cientista social e advogada, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná e doutoranda em Sociologia na Universidade de Heidelberg.

Fonte: JOTA

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