Folha de S.Paulo
Jornalista: Cláudia Collucci
Um grupo de 334 brasileiras tenta um acordo indenizatório extrajudicial de 30 milhões de euros (cerca de R$ 180 milhões) com a farmacêutica multinacional Bayer por danos que teriam sido provocados pelo contraceptivo Essure, um implante permanente tido como alternativa à laqueadura de trompas.
O dispositivo foi autorizado em 2009 pela Anvisa. Em 2017, a agência chegou a proibi-lo por questões de documentação e depois o liberou, mas a própria Bayer pediu o cancelamento do registro do produto no mesmo ano. A retirada também ocorreu na Europa e no Canadá e, um ano depois, nos EUA.
À Folha a farmacêutica diz que a segurança do Essure é comprovada por uma série de estudos e que decidiu retirar o produto do mercado por motivos comerciais e de estratégia de negócios.
No entanto, o período coincide com uma avalanche de queixas de mulheres em vários países.
As reações adversas mais comuns relatadas são dor crônica, fadiga, perda de cabelo, sangramento vaginal e depressão. Porém, não há na literatura médica estudos científicos robustos que expliquem de que forma o dispositivo pode causar esse conjunto de sintomas. O implante é de aço inoxidável revestido por níquel-titânio.
Centenas de mulheres ainda lutam para se livrar do contraceptivo, que consiste em duas molas colocadas entre as trompas e o útero e que impedem a fecundação. A única forma de extirpá-lo é por meio de uma cirurgia que retira o útero e as trompas.
Em maio deste ano, o Ministério da Saúde recomendou que secretarias estaduais de Saúde contatassem as mulheres que convivem com Essure e que as informassem sobre os riscos e a necessidade de retirada. O dispositivo não está incorporado ao SUS, mas foi adquirido por alguns gestores estaduais.
O ministério também orientou que as usuárias sejam acompanhadas por uma equipe multiprofissional, inclusive psicossocial. Estima-se que ele tenha sido implantado em cerca de 8.000 brasileiras, mas não há dados sobre quantas apresentaram problemas.
Em agosto de 2020, a Bayer fez um acordo para pagar US$ 1,6 bilhão (R$ 8,2 bilhões) por cerca de 90% das ações contra o Essure (estimadas em 39 mil) que tramitavam nos tribunais da Califórnia e da Pensilvânia, nos EUA. Isso estimulou o grupo brasileiro a seguir o mesmo caminho.
Segundo a advogada Bruna Ficklscherer, associada do escritório internacional PGMBM e que representa o grupo brasileiro, caso não haja acordo, o próximo passo será uma ação coletiva nos tribunais alemães. O escritório também representa cerca de 2.000 mulheres no Reino Unido e na Holanda.
Na carta encaminhada à Bayer no último dia 23, os advogados Rosa Germano pedem uma resposta até o próximo dia 6. Em nota, a farmacêutica informou que a sua prioridade é a segurança e a eficácia dos produtos.
“Nos solidarizamos com todos os que possa ter tido algum problema de saúde ao usar qualquer um deles, independentemente da causa. A empresa confia no conjunto de evidências científica do Essure e pretende se defender no tribunal, caso haja ações judiciais.”
Ficklscherer afirma que há evidências de que a farmacêutica estava ciente dos riscos de complicações graves do dispositivo, mas que não informou de forma transparente o público ou os profissionais de saúde sobre eles.
“As mulheres que ainda não conseguiram retirar o dispositivo estão extremamente ansiosas. Tentar isso no SUS tem sido muito difícil.”
De acordo com a advogada, muitas dessas mulheres convivem com sangramentos, dores pélvicas e de cabeça e sofrem de depressão. Muitas perderam o emprego porque precisavam faltar no trabalho, devido aos sintomas.
A produtora de eventos Mônica Cavalcanti, 43, mãe de quatro filhos, é uma das mulheres que buscam uma indenização da Bayer. Ela teve o Essure implantado em 2015, em um hospital público de São Paulo, um ano depois do nascimento da caçula. “Parecia uma coisa muito simples, rápida, ambulatorial.”
Mas o tempo foi passando e o sangramento não cessava. Ao mesmo tempo, passou a ter queda de cabelo, sobrancelhas, cílios, perda de dentes. “Engordei muito, passei a ter uma barriga enorme, nem me olhava mais no espelho, me sentia horrorosa. Um dia eu me vi em depressão.”
Em 2017, após ler que a Anvisa havia proibido o dispositivo, ela diz que começou a pesquisar e encontrou relatos de mulheres americanas com queixas muito parecidas com as suas. Só então associou os sintomas ao dispositivo.
“Entrei em contato com um médico americano, relatei os sintomas e ele me deu todas as orientações. Juntei todo material, procurei o meu médico. Ele deu risada na minha cara, insinuando que eu estava louca. Catei o celular e mostrei tudo o que tinha [sobre os efeitos do Essure].”
Cavalcanti conseguiu retirar o implante por meio de uma histerectomia por videolaparoscopia, mas diz que as dores ainda persistem. Hoje tem o diagnóstico de fibromialgia. “Eu queria não ter mais filhos, mas acabei destruindo a minha vida.” Ela mantém a página “Vítimas do Essure BR” no Facebook, que reúne centenas de relatos de mulheres com as mesmas queixas.
Rosa Germano, 34, passou por situação parecida em um hospital público no Rio de Janeiro. Ela também colocou o implante em 2015, um ano depois do nascimento do seu único filho. “Me disseram que o dispositivo tinha vindo para revolucionar, que era uma laqueadura ambulatorial, um método indolor.”
Após a implantação, ela passou a ter hemorragia constante, mas diz que os médicos afirmavam que era normal. “Em seis meses, ganhei dez quilos. Perdi cabelo, cílios e sobrancelhas, sentia muitas dores nas articulações e fiquei impossibilitada de trabalhar.”
Foi por meio de pesquisas na internet que ela localizou outras mulheres com problemas semelhantes e que já tinham conseguido retirar o dispositivo. Depois de muita briga, ela também conseguiu.
Em audiência da Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados no ano passado, o secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde, Raphael Câmara, disse que quando atendia pacientes no Rio de Janeiro não apoiou o uso do dispositivo.
“Eu não aceitei porque eu já sabia por diversos relatos que isso estava dando problemas nos Estados Unidos.” Na sua opinião, além da responsabilidade da empresa, pessoas que autorizaram a implantação também deveriam ser responsabilizadas.
Toda a polêmica envolvendo o Essure é tratada no documentário da Netflix “Operação Enganosa” (The Bleeding Edge), que trata de complicações devastadoras de dispositivos médicos aprovados pela agência reguladora dos EUA (FDA) e que movimentam bilhões de dólares.
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