Época Negócios
Jornalista: Karina Pastores
10/01/20 – Marcos e Margarete Brito são pais de Sofia. A menina de 11 anos é portadora de uma síndrome rara. Recém-nascida, era acometida por crises epilépticas diárias. Sem que nenhum medicamento tradicional atenuasse o sofrimento da garota, a mãe encontrou alívio para a filha na Cannabis medicinal. Em 2016, Margarete foi a primeira brasileira autorizada a cultivar a erva e a produzir o remédio em casa. Aos 45 anos, ela é uma daquelas raras pessoas que fazem do sofrimento uma força transformadora. Da dor, luta — coletiva. Fundadora e líder executiva da Apepi — Apoio à Pesquisa e a Pacientes de Cannabis Medicinal, Margarete defende a bandeira pela liberação do plantio individual e associativo de Cannabis para fins terapêuticos.
“Depois de uma Gravidez e um parto maravilhoso, no dia 3 de dezembro de 2008, Sofia nasceu. Bebê lindo, gorducho. Tudo certo até ali. Aos 35 dias de vida, ela começou a sofrer convulsões. Foi o início de um sofrimento. Seis crises por dia. Além de dar drogas e mais drogas para aquela criança tão pequenininha, tão delicada, nenhuma delas controlava as crises. Eram drogas e mais drogas, todas lícitas. Tarja preta, vermelha, amarela... Todas as cores, todas as doses, todas as combinações.
Só após dois anos e meio tivemos o diagnóstico: CDKL5, uma desordem genética recém-descoberta que prejudica a produção de uma proteína fundamental para o bom funcionamento do cérebro, caracterizada por crises epilépticas frequentes. Comecei um blog para compartilhar minha história e, quem sabe, encontrar outras pessoas com casos parecidos. Conheci muitas mães em situações semelhantes. Trocamos informações e descobrimos que a maconha podería ser um tratamento não só para a epilepsia resistente aos medicamentos, como também para Parkinson, Alzheimer, esquizofrenia, autismo, dores e náuseas provocadas pelo câncer, esclerose múltipla e outras tantas doenças.
Vi em um grupo internacional do Facebook o caso de uma menina americana com a mesma síndrome de Sofia e que havia respondido muito bem ao uso do óleo de canabidiol. Consegui uma amostra grátis direto com a fabricante e, em 11 de outubro de 2013, Sofia iniciou o tratamento. Com o óleo importado, as crises reduziram um pouco, mas Sofia teve constipações e ficou muito agitada. Senti-me insegura e decidi parar. Na época, não tinha ninguém com quem tirar dúvidas. Nem médicos. Ninguém sabia nada. Alguns meses depois, ganhei um frasco de óleo artesanal de um médico, que plantava maconha em casa para tratar a sogra, portadora de fibromialgia. Com esse óleo artesanal, Sofia reduziu as crises em 60% e melhorou muito. Resolvemos plantar. Plantamos ilegalmente por mais de dois anos. Nossa autorização só saiu no dia 17 de novembro de 2016.
Dois anos antes, eu e familiares de outras crianças vítimas de epilepsia fundamos a Apepi — Apoio à Pesquisa e a Pacientes de Cannabis Medicinal. Da missão de ajudar, a Cannabis medicinal hoje é meu trabalho. Com sede no centro do Rio de Janeiro, a Apepi conta com cerca de 400 associados, mais de 200 mil pessoas cadastradas e dez pessoas com trabalho remunerado. Além de educação médica, acolhimento a pacientes, cursos de cultivo e extração, conexão entre médicos e pacientes e auxílio na importação de medicamentos, fazemos clones das plantas de espécies que selecionamos e seu cultivo para a fabricação do remédio. Em parceria com a Fiocruz, já realizamos dois seminários internacionais, com cerca de 600 pessoas cada um. O terceiro está marcado para junho de 2020.
Produzir a medicação em casa não é tão simples como as pessoas imaginam — não é jogar umas sementinhas no vaso e esperar crescer. Além dos cuidados com o cultivo, é preciso conhecer quais espécies são mais adequadas a cada doença. E um trabalho muito sério, que requer experiência. Quem produz os medicamentos em casa o faz por necessidade. A necessidade nos fez aprender a cultivar e a fazer nossa própria medicina. Conquistamos esse direito com trabalho, ao longo de muitos anos. E hoje ele é sinônimo de autonomia, poder, amor e aproximação de pacientes e médicos, cientistas e sociedade em geral.
Atualmente somos cerca de 20 associações de pacientes de Cannabis medicinal, de norte a sul do Brasil. Elas começaram a surgir a partir de 2015, por uma necessidade da sociedade civil organizada e para suprir uma lacuna deixada pelo Estado. Até agora, 52 decisões judiciais autorizam pacientes a plantar Cannabis e a produzir seu próprio remédio. Além delas, uma associação em João Pessoa, com 3 mil associados, e uma empresa no interior de São Paulo também podem cultivar. Após parecer favorável do Ministério Público Federal, a Apepi também aguarda uma liminar da 4a Vara Federal do Rio de Janeiro para sair da ilegalidade em relação ao cultivo associativo e aumentar sua capacidade de atendimento à própria demanda.
O parecer da Anvisa não interfere nos processos judiciais que transitaram em julgado. Mas, para os pacientes que ainda não conquistaram esse direito, ficará ainda mais difícil. A principal justificativa para um juiz autorizar o cultivo individual ou coletivo é a falta de remédios para quem precisa. Para a maioria do Judiciário, a partir de agora esse problema está resolvido. O que não é verdade.
Em primeiro lugar, deve demorar ainda uns três anos para a escassez começar a diminuir. E ainda que os preços caiam, os medicamentos se manterão inacessíveis para muita gente. Afinal, a matéria-prima continua a ser importada. E há de se considerar ainda que muitos pacientes respondem melhor ao medicamento artesanal. A única forma verdadeiramente justa e democrática da Cannabis como ferramenta terapêutica prevê o cultivo individual e coletivo.
Sabemos que não é da competência da Anvisa regulamentar o cultivo individual e associativo. As associações e os pacientes seguem aguardando o Poder Legislativo, em relação a inúmeras propostas em andamento na Câmara e no Senado. Enquanto isso não acontece, continuamos a depender do Poder Judiciário para chancelar nosso direito à saúde e à vida — à mercê dos riscos que o cultivo ilegal oferece a pessoas já tão vulnerabilizadas pelas próprias doenças. Tão triste quanto real.”
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