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Acordos entre departamentos de recursos humanos de empresas mancomunadas criam uma armadilha kafkiana para profissionais em busca de novas oportunidades de trabalho

VOCÊ SA
Por Juliana Américo | Edição: Alexandre Versignassi | Design e Ilustração: Tiago Araujo

Chega aquele dia. Você está ok com o seu trabalho, mas sente que sua carreira empacou. Sabe que, na empresa onde está, a chance de promoção ou de aumento é quase nula, por mais que elogiem os resultados que você entrega. Hora de explorar o mercado de trabalho e procurar um lugar melhor.

E opa: uma empresa bacana está com vagas abertas, justamente na sua área. Currículo daqui, entrevista de lá… Tudo indica que você se encaixa no cargo e que o entrevistador gostou do seu perfil. Até que vem a notícia: não rolou. “Muito obrigado, você foi excelente no processo seletivo. Mas decidimos por outra pessoa.”

Vida que segue. Até que um dia vem o plot twist: você descobre que não conseguiu a vaga porque sua empresa atual bloqueou a contratação por debaixo dos panos. E se sente o próprio Josef K, o personagem de Franz Kafka acuado por uma teia torturante de intrigas, no livro O Processo.

Parece absurdo. É absurdo. Mas aconteceu algo parecido com Fernando*. Ele atua na área de tecnologia e trabalhou em uma mesma companhia por mais de 15 anos. “Eu já estava há sete anos lá. Vi que um dos nossos fornecedores abriu uma vaga, no escritório que eles têm nos EUA. Gostei e me inscrevi. Mas logo depois o meu gestor me chamou e perguntou por que eu enviei o meu currículo.”

Foi quando ele descobriu que havia um “acordo de cavalheiros” entre as duas empresas, de jamais contratar funcionários uma da outra. Isso não estava no contrato de trabalho, claro. “Um ex-colega já tinha saído da companhia um ano antes, e também não conseguiu ser contratado”, relembra.
Bom, “acordo de cavalheiros” é um eufemismo. O que temos aí é um caso de formação de cartel – um mecanismo ilegal que barra a concorrência. Cartéis de formação de preços lesam o consumidor. É o que acontece quando postos de gasolina de um bairro combinam na surdina o valor que vão cobrar pelo combustível. Cartéis de retenção de funcionários, como o que pode ter barrado Fernando, lesam o trabalhador.

Não se trata de um caso isolado, atípico. Tanto que há uma investigação sobre o assunto em andamento no Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), o órgão público que tem por missão proteger a livre concorrência e combater a formação de cartéis e monopólios.

Em março, a instituição abriu um processo contra 37 empresas do setor de saúde. Entre as envolvidas estão algumas gigantes, como Abbott, Bayer, Johnson & Johnson, Novartis e Roche. A acusação: suposta troca de informações sensíveis dos trabalhadores – como condições de contratação, remunerações, reajustes salariais. E pior: fixação de salários (wage-fixing, no jargão internacional) e o tal acordo de não recrutar profissionais umas das outras (no-poach).

Nenhuma empresa é uma ilha. Todas estudam ferozmente o mercado em que atuam para saber o quanto devem pagar aos seus funcionários e quais vantagens extras devem oferecer para retê-los. Disponibilizar carro da empresa para gerentes, por exemplo, pode ser um prejuízo desnecessário ao empregador se esse benefício já estiver em extinção no mercado. No jargão corporativo, trata-se de formar um benchmarking – um ponto de referência a partir do qual a empresa estipula os salários e benefícios que vai oferecer.

Como todas as companhias fazem esse tipo de estudo, é natural que troquem informações diretamente entre elas. É o chamado “benchmarking colaborativo”. A lei antitruste brasileira, que serve para garantir a concorrência leal, determina que o benchmarking deve ser usado para incentivar o aumento da eficiência, da segurança do trabalho e para reduzir custos.

Certo. Mas existe um limite para a camaradagem. É proibido trocar informações sensíveis. Tradicionalmente, a lei entende que “informações sensíveis” são preços futuros de produtos, custos de produção e políticas de desconto. A parte trabalhista, porém, é novidade nessa seara – o processo em tramitação no Cade é o primeiro do tipo no Brasil, e envolve uma reinterpretação das leis.

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O elo mais fraco

Nas leis que regem a concorrência, a força de trabalho é considerada um insumo, um item necessário para que a empresa funcione. Na prática, os departamentos de recursos humanos são os responsáveis pela compra dessa “matéria-prima”.

A formação de cartel para a venda é a mais conhecida e melhor abraçada pela lei, já que tem um impacto direto no consumidor, na economia como um todo. Mas e se o acordo for para a compra de um insumo?

Vamos supor que várias empresas se unissem para ganhar escala e comprar alguma matéria-prima que todas usem. Isso reduziria os custos e poderia refletir na redução do preço. Bom para o consumidor, bom para a economia. Mas é aí que a porca torce o rabo: um funcionário, obviamente, não é um insumo inerte. Ele também é um agente econômico. Se o salário dessa pessoa, se as oportunidades de crescimento profissional dessa pessoa forem tolhidas, não é nada bom para a economia. Isso amplia a desigualdade: a pessoa deixa de receber sua remuneração justa, aquela que teria num ambiente de livre concorrência.

A diferença entre o salário real e o salário justo fica com os donos das empresas. Não é algo apenas imoral. Também é ruim para a economia. Dinheiro que iria para a compra de um imóvel, por exemplo, pode simplesmente ficar dormindo nas contas bancárias dos acionistas. Não gera emprego. Não gera nada. Sim, este é um exemplo exagerado. Uma empresa que gaste menos com salários pode vender produtos mais baratos, como tantas realmente fazem – mas, sim, o que dissemos aqui faz parte da realidade.

Trata-se de uma vantagem exagerada para o empregador, enfim. Se ele recusar um pedido de aumento de salário, sabe que não precisará se preocupar com a possibilidade de um concorrente atrair seu funcionário com uma remuneração mais alta. Pior: os salários de um setor cartelizado tendem a ficar menores que os de setores onde impera a livre concorrência. Mais uma injustiça econômica.

Como o Cade zela por toda a economia, então, é natural que ele também deva garantir a livre concorrência salarial. “Essa é uma nova visão que o Cade tem: a de que a interferência na movimentação de profissionais e limitações salariais é uma forma de controle de mercado”, diz Felipe Rabelo, advogado trabalhista e sócio no escritório TPC Advogados. A Você S/A entrou em contato com o Cade. A instituição não quis dar entrevista sobre o caso, mas informou que os dados da ação estão disponíveis para consulta pública e que não há prazo legal para a conclusão do processo.

Lá fora funciona

A investigação do Cade pode ser a primeira desse tipo no Brasil. Mas isso já é comum em países desenvolvidos. Um dos casos mais famosos aconteceu em 2010. Na época, funcionários de empresas do Vale do Silício iniciaram uma ação pública para processar Apple, Google, Intel, Adobe e Intuit, além do estúdio Pixar e da produtora Lucasfilm, por manterem um acordo de não recrutar profissionais umas das outras e combinar tetos salariais.

O Ministério da Justiça dos EUA identificou o seguinte: os conluios entre as empresas tinham começado em 2005, com dois acordos: um entre a Apple e a Adobe; outro entre Pixar e Lucasfilm. Os pactos acabaram se juntando em 2007, quando outras companhias já estavam envolvidas.
O fundador da Apple, Steve Jobs, chegou a ser acusado de ameaçar outras empresas que tentavam “roubar” os empregados da dona do iPhone. Em 2007, Jobs enviou um e-mail a Edward Colligan, ex-CEO da Palm (antiga fabricante dos palmtops), afirmando que, se ela continuasse a contratar funcionários da Apple, ele começaria uma guerra de patentes – quando uma empresa processa a outra alegando violação de propriedade intelectual (algo que tende a se tornar um labirinto jurídico sem fim).

Ou seja: mesmo o empresário mais canonizado da história, e que de fato era tão ambicioso quanto genial, não abria mão das vantagens que só a cartelização proporciona.

Para evitar situações desse tipo, países como EUA e Japão desenvolveram guias antitruste para os departamentos de recursos humanos. Os documentos deixam claras quais práticas de RH são consideradas ilícitas, e quais não. Estão proibidas as trocas de informações sobre composição salarial, fixação de remuneração e de benefícios com outras empresas, além de acordos de não contratação.

Esses guias antitruste são importantes porque o Cade pode se basear neles para tomar uma decisão sobre o cartel dos RHs. “Em média, um processo normal do Cade leva cinco anos para ser concluído. Esse dos RHs, por ser novidade e ter muitas empresas envolvidas, deve demorar ainda mais. Durante esse período, a instituição deve entender como os outros países estão fazendo”, diz Ademir Pereira Jr., especialista em direito da concorrência e sócio do escritório de advocacia José Del Chiaro.

Se condenadas por formação de cartel, as companhias envolvidas no processo do Cade terão de pagar uma multa de até 20% do valor do seu faturamento anual.

Mas, como Ademir lembrou, ainda tem chão. Se você acha que a empresa onde você trabalha tem acordos sinistros com os pares dela, e que isso está travando sua carreira, terá de mover alguns pauzinhos.

Fernanda Garcez, advogada trabalhista e sócia no escritório Abe Giovanini Advogados, orienta o seguinte: você pode denunciar para o Ministério Público do Trabalho ou então acionar o sindicato para entrar com uma ação coletiva. “Se você tiver algo concreto, como uma lista com o nome dos funcionários que estão barrados, dá para entrar com um processo trabalhista pedindo danos morais e até materiais.”

No cabo de guerra entre empresas e funcionários, essa pode parecer uma causa perdida – seja na dificuldade de conseguir provas ou na demora do processo. Mas Fernanda é enfática: “O livre exercício profissional é um direito constitucional. Qualquer empresa que impedir isso vai impactar o mercado de trabalho e precisa ser punida.” Sem dúvida.

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Jogo dentro das regras

Mas nem todo acordo que envolva o limite do livre exercício é ilegal, ou imoral. Algo comum é a cláusula de “não competição” (non compete no jargão internacional). Ela pode entrar no contrato de trabalho e determinar que o funcionário não pode ir para uma concorrente logo após deixar a empresa.

O objetivo aí é proteger segredos comerciais. Dependendo do seu cargo, você tem acesso a decisões estratégicas que não podem vazar para o mercado. Ao mudar de emprego, acaba levando todo esse conhecimento para outra organização. É natural, então, que uma empresa garanta que não vai entregar tudo de bandeja a cada gerente ou diretor que se mude para a concorrência.

Mas vale ressaltar: esse é um acordo entre empregador e funcionário. A companhia tem o direito de evitar que seus empregados sejam recrutados por fornecedores ou clientes, mas ele não pode negociar diretamente com outras companhias.

Existem algumas regras para o cumprimento dessa cláusula, de acordo com a Justiça do Trabalho. Primeiro: ela não vale para todos os funcionários. A cláusula existe para proteger segredos comerciais. Isso significa que só deve ser aplicada a empregados com acesso a informações confidenciais. Aplicá-la a todos seria um abuso.

E o funcionário não sai de mãos vazias. É obrigatório que a companhia ofereça uma compensação financeira. “Tem que assegurar ao profissional estabilidade financeira durante o período em que a cláusula está valendo. Ele não precisa receber o salário integral, mas a jurisprudência tem fixado esse valor entre 40% e 50% da remuneração que ele tinha”, explica Felipe Rabelo. A cláusula de non compete também não pode valer por tempo indeterminado. Indica-se um período de seis meses a dois anos.

O mais comum é as empresas listarem as concorrentes que estão proibidas. Foi o que aconteceu com o Fernando depois que saiu da companhia onde estava. “Na minha empresa atual, existe a cláusula de confidencialidade e a regra é clara: se eu sair hoje da organização, pelo próximo ano, não posso trabalhar nas concorrentes x, y, z.” Jogo jogado.

Fonte: https://vocesa.abril.com.br/sociedade/cartel-dos-rhs-prejudica-economia-e-mercado-de-trabalho-entenda/ ;

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