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Colunista: Cristiane Segatto*

13/11/19 - Nos melhores hospitais privados, a cena é das mais corriqueiras: depois de passar por um procedimento cirúrgico simples, o paciente se recupera por duas ou três horas em um leito de hospital-dia.

Pouco antes da alta, um profissional de enfermagem traz uma caixa com 100 luvas e faz questão de mostrar ao paciente que ela está sendo aberta naquele momento. Pega um par, cobre as mãos e retira o acesso venoso por onde o paciente recebia a medicação.

Pronto! Feliz com o excelente atendimento, o cliente é liberado para voltar para casa. Os outros 99 pares de luva ficarão para trás e não serão utilizados em outro quarto, mas quem se preocuparia com um detalhe como esse? Em algum momento, a sociedade precisa começar a se preocupar.

De grão em grão, de luva em luva, de gaze em gaze, a galinha dos custos de saúde enche o papo. O preço unitário da luva, da gaze e de outros materiais de baixo custo pode não impressionar, mas a soma desses e de outros itens desperdiçados contribui para o inchaço das mensalidades dos planos de saúde. No final da história, todos nós pagamos a conta.

O tamanho do desperdício

Um artigo publicado recentemente no Journal of the American Medical Association (JAMA) dá a dimensão do desperdício de suprimentos em hospitais nos Estados Unidos. O país não faz bom uso do dinheiro que a sociedade investe em saúde. Gasta quase o dobro de outras nações desenvolvidas, mas apresenta resultados piores.

Parte dessa ineficiência pode ser explicada pelo mau uso de suprimentos nos hospitais. É o que Cassandra Thiel e Leora I. Horwitz, da New York University School of Medicine, explicam no artigo.

Um dos exemplos diz respeito aos resíduos resultantes de 58 procedimentos de neurocirurgia. Na pesquisa citada pelas autoras, em média 13% dos materiais cirúrgicos foram descartados, sem uso, ao final das operações. O custo estimado desse desperdício foi de US$ 2,9 milhões por ano no departamento onde o estudo foi realizado.

Um padrão que precisa mudar

Outro trabalho buscou quantificar desperdícios de medicação em 40 cirurgias de catarata. Em média, 45% do volume dos produtos foram descartados sem uso. Essas perdas custaram US$ 190 mil por ano em dois dos quatro hospitais onde a pesquisa foi realizada. Por que isso acontece? Entre as razões, está o tamanho inapropriado das embalagens e a proibição de que o paciente leve a medicação para casa.

Desperdício não é exclusividade da neurocirurgia ou da oftalmologia. O descarte regular de materiais não utilizados é um padrão recorrente em outras áreas dos hospitais. Mais de 1 mil anestesiologistas e cirurgiões entrevistados em outra pesquisa americana têm consciência do problema. Os médicos relataram que grande parte dos resíduos cirúrgicos gerados por eles é desnecessária e só aumentou ao longo dos anos de prática.

Segundo as autoras do artigo do JAMA, "os custos provocados pelo desperdício de materiais poderiam ser reduzidos, sem comprometer as margens de lucro dos hospitais e dos planos de saúde". Na visão delas, isso aumentaria a probabilidade de adoção das mudanças necessárias.

Margens de lucro, o xis da questão

Adoraria ver um estudo semelhante em instituições de saúde brasileiras. O desperdício, o uso exagerado e o sobrepreço de materiais são distorções bem conhecidas dos administradores hospitalares e dos gestores de planos de saúde.

Falta o cliente ter conhecimento do que está pagando para que ele possa fazer pressão por mudanças. O modelo de remuneração vigente na maioria dos hospitais brasileiros faz com que eles funcionem como grandes varejistas de insumos. Quanto maior o uso de materiais (de luvas e esparadrapo a próteses de alto custo), mais eles ganham.

Para os hospitais, insumo é receita – não custo. Sei que parece insano, mas é assim que as coisas funcionam. De um lado, há os planos de saúde que não aceitam melhorar a remuneração dos hospitais pelos serviços prestados a seus beneficiários. Do outro, há os hospitais gastando material excessivamente e cobrando mais do que deveria a cada par de luvas utilizado – ou descartado.

Tudo isso é colocado na conta do paciente e enviado ao plano de saúde. Se os custos aumentam, mais cedo ou mais tarde eles são repassados aos beneficiários. Ou seja: pagamos a conta do desperdício.

Nos últimos anos, novas formas de remuneração têm sido celebradas entre operadoras de plano de saúde e alguns hospitais. O objetivo é fazer um uso mais racional do dinheiro dos clientes e garantir mais saúde, em vez de explorar a doença. É um bom começo, mas estamos longe de virar o jogo.

Sabe a mensalidade pesada do plano de saúde que você paga todo mês? As luvas desperdiçadas (e tudo o que elas representam) estão na conta. Não dá para enxergar em detalhes porque esse universo é obscuro mesmo, mas elas estão lá. Mesmo que você tenha passado bem longe de um hospital.

 

(*) Cristiane Segatto é jornalista e mestre em gestão em saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Durante as últimas duas décadas, cobriu saúde e ciência na Revista Época e nos jornais O Globo e Estadão. Foi colunista da Época online e comentarista da Rádio CBN. Suas reportagens especiais sobre o universo da saúde conquistaram mais de 15 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, dois prêmios Esso de Jornalismo na Categoria Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental.

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