Como vivem os últimos pacientes do Juquery

O Estado de S.Paulo

Jornalista: Caio Nascimento

09/12/19 - Virgínia*, de 95 anos, passa os dias deitada em uma maca na ala dos acamados do Juquery, em Franco da Rocha, na Grande São Paulo, onde ficam 11 pacientes — a maioria nascida na década de 1920. Hoje encolhida na cama e com o rosto coberto, como prefere ficar por horas, ela chegou ao hospital há 76 anos com surtos de esquizofrenia e se tornou a moradora com mais tempo na instituição.


Assim como a maior parte dos internos, Virgínia não tem laços familiares. Dos 57 que estão lá, 23 (40,3%) não recebem visitas de parentes e 34 (59,7%) recebem com baixa frequência — de duas a seis vezes por ano.Além disso, a maioria dos raros encontros não é demonstração de afeto, mas de interesse.


Segundo a psicóloga da unidade, Paula Karkoski, alguns procuram os idosos apenas por questões de herança. “A qualidade da visita nem sempre é a que a gente gostaria”, lamenta.


De acordo com o diretor do Juquery, Glalco Cyriaco, o fato de serem mais velhos complica ainda mais a aproximação, pois os vínculos afetivos se perderam e as famílias mudaram completamente: a média de internação no hospital é de 33 anos e a de idade, de 70.


As dificuldades esbarram também em questões financeiras: parte dos parentes não pode levar os idosos por falta de condições de sustentá-los. Em meio a uma rotina monótona, quem passa por lá sente que parou no tempo: além da arquitetura clássica projetada por Ramos de Azevedo em 1895 — em ruínas —, depara-se com histórias de pessoas que, alheias à realidade, estacionaram em mágoas e assuntos do passado.


Maria*, de 102 anos, está internada há 38 por esquizofrenia e lembra dos parentes como pessoas ruins. “Eu só tinha na vida a minha mãe, mas ela morreu quando eu era pequena. Aí sobrou a parte do mal”, conta.


Já Clóvis*, de 83 anos, está internado há 34 e abre um sorriso quando fala de juventude, antes de ser diagnosticado com esquizofrenia. “Gosto de pegar na enxada e cortar mato. Nunca tive medo de trabalhar”, diz ele.


Todos os pacientes estão em condições de receber alta e nenhum sofre com surtos psicóticos. Mas o processo de saída não é simples: eles aguardam a abertura de novas vagas em residências terapêuticas (RTs) — lares municipais voltados para a reinserção cidadã de pacientes psiquiátricos de longa duração.


Não há previsão para a desativação do Juquery. Mas, segundo a coordenadora de saúde mental da cidade de São Paulo, Claudia Ruggiero, a Prefeitura abrirá 10 novas residências ainda neste ano com 100 vagas ao todo, das quais 19 serão para moradores do complexo.


Abusos

 

Os pacientes do Juquery são remanescentes de uma época marcada por internações psiquiátricas de longa duração em locais isolados. Até o fim dos anos 1970, o Juquery chegou a ter 15,6 mil internos e acumulou relatos de violação de direitos humanos. No livro O Capa-Branca, Walter Farias, um ex-funcionário que se tornou paciente nos anos 1970, relata abusos. “Os pacientes eram amarrados em camisas de força e submetidos a banhos gelados.
Os tratamentos ainda incluíam injeções do parasita da malária, aplicação de altas doses de insulina para provocar o coma e a lobotomia, que retirava pedaços do cérebro”, recorda.

 

Essa violência só passou a ser reduzida no Brasil com o a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988, que permitiu a troca do modelo hospitalocêntrico por uma Rede de Atendimento Psicossocial (Raps) fora dos manicômios. Além disso, o avanço da reforma psiquiátrica (lei de 2001) também contribuiu para a desativação dos hospitais, ao exigir que os pacientes fossem transferidos para os serviços públicos comunitários de saúde mental.

 

Além dos 57 pacientes que permanecem no Juquery, 40 ex-internos passaram a viver em residências terapêuticas. “Quando o paciente vai para a RT, deixa de ser visto como peso morto confinado num hospital, pois pode gerar renda com o auxílio que recebe. Pode comprar pão na padaria, roupas e até exercer atividade profissional. Isso permite que ele recupere a autonomia”, diz o psiquiatra Augusto Cesar Costa, da Academia de Medicina de Brasília.


José Luiz, de 60 anos, é uma prova disso. Ele ficou internado por quatro décadas no Juquery com esquizofrenia e, há quatro anos, foi enviado para uma RT. Recebe Bolsa Família e administra o dinheiro com a ajuda da equipe de saúde mental do município. “Hoje, me sinto melhor. Gosto de ficar na cama escutando meu radinho”, diz.

 

* NOMES VERDADEIROS PRESERVADOS

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