Folha de S.Paulo
Colunista: Lygia da Veiga Pereira
02/02/20 - O Projeto DNA do Brasil nasceu da necessidade de incluir o povo brasileiro na chamada medicina de precisão, que usa dados do nosso DNA para melhorar a prevenção e tratamento de doenças como hipertensão, diabetes e câncer. Para isso, é fundamental o sequenciamento do DNA de diferentes populações para identificar quais genes estão associados ao maior risco de cada doença.
Porém, 80% dos dados genéticos disponíveis no mundo são de populações caucasianas —europeus e norte-americanos. E variações genéticas entre populações fazem com que o que vale para caucasianos não necessariamente valha para outras etnias. Ou seja, hoje a medicina de precisão só é precisa mesmo para brancos.
A cientista Lygia da Veiga Pereira, professora titular de Genética da USP e líder do Projeto DNA do Brasil - Mathilde Missioneiro - 22.out.19/Folhapress
Para remediar essa desigualdade, criamos o projeto DNA do Brasil para conhecer a fundo a genética da nossa população tão miscigenada —índios, europeus, africanos e asiáticos se encontraram em “terra brasilis”, se misturaram e deram origem ao brasileiro atual, cada um deles um mosaico com diferentes proporções desses povos.
Mas quem sequenciar? O valor de um projeto desses vem da combinação de dados genéticos com dados de saúde dos indivíduos. Assim, fizemos uma parceria com o Estudo Longitudinal do Adulto (Elsa), que acompanha a saúde de 15 mil brasileiros de todos os estados do país com financiamento dos Ministérios da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicação (MCTIC) e da Saúde. A inclusão dos dados genéticos dos participantes do Elsa aumentaria ainda mais o impacto do estudo, porém não havia verba para o sequenciamento do DNA.
Modelo de estrutura de dupla hélice do DNA (ácido desoxirribonucleico), cadeia molecular que compõe o material genético dos seres vivos - The Wellcome Trust/Reuters
Fomos então atrás de financiamento. Mas 2017 e 2018 foram anos difíceis para o MCTIC, e 2019 seria ainda pior. Como se tratava de um projeto de pesquisa para todo o Brasil, procuramos o apoio da iniciativa privada —afinal, se empresas patrocinam cultura, por que não ciência e um projeto para conhecer o DNA do brasileiro?
A primeira empresa a reconhecer a importância do projeto foi o escritório de advocacia Pinheiro Neto, que prestou assessoria jurídica pro bono (sem remuneração). Em seguida, a Google Cloud nos deu espaço em nuvem para armazenamento e processamento de 3.000 genomas, além de suas ferramentas para processamento de dados de DNA utilizadas pelos principais grupos de pesquisa internacionais. Como qualquer outro dado armazenado ali, a empresa não tem nenhum acesso aos dados do DNA do Brasil, e o que ganha é a exposição de sua marca.
Finalmente, o terceiro parceiro foi a Dasa, o maior grupo de medicina diagnóstica no país. O projeto DNA do Brasil veio ao encontro do investimento do grupo na área de diagnóstico genético, e assim entraram com o custo e a execução do sequenciamento do DNA de 3.000 participantes. Com isso, em vez de o sequenciamento ser realizado fora, será feito aqui no Brasil.
Como a Google Cloud, a Dasa está atuando como um prestador de serviços, gerando as sequências sem ter acesso às mesmas. Para ter acesso aos dados, a empresa terá que seguir os procedimentos que qualquer outro grupo público ou privado seguirá, incluindo aprovação de projeto por comitê de ética em pesquisa.
A beleza desta história é que, uma vez que o projeto DNA do Brasil estiver de pé, a Secretaria de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde já nos encomendou um projeto para ir muito além dos 15 mil brasileiros e incluir definitivamente nossa população na era da medicina de precisão. Assim, unindo forças do público com o privado, estamos colocando o Brasil no mapa mundial da genômica.
É verdade que falar de medicina de precisão para uma população que ainda não tem saneamento básico pode parecer delírio. Porém, se fôssemos esperar resolver questões básicas para então passarmos para as complexas, o país ainda estaria na era das sangrias.
Temos que trabalhar em paralelo, cuidar de educação e saneamento e, ao mesmo tempo, desenvolver ciência de ponta. Atenção: o topo da pirâmide brasileira, predominantemente branco, já está contemplado nos estudos de DNA feitos na Europa e nos EUA. O projeto DNA do Brasil é ciência feita por todos e para todos os brasileiros.
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