Folha de S.Paulo
Jornalista: Cláudia Collucci
07/03/20 - Os recentes avanços na pesquisa biofarmacêutica, combinados ao uso de inteligência artificial e big data, abrem caminho para novas terapias genéticas e celulares voltadas às doenças raras, antes intratáveis.
Mas persistem os dilemas que envolvem o acesso a medicamentos para essas condições. Os problemas não estão restritos ao Brasil. Atingem até países desenvolvidos.
Pesquisa feita pela Organização Canadense de Doenças Raras mostrou que 78% dos pacientes enfrentam dificuldades de acesso aos tratamentos. Mais da metade (58%) teve pedido negado em razão dos custos. A estimativa é que 1 milhão de canadenses (dois terços deles, crianças) sofram de doenças raras.
Vários países, inclusive o Brasil, tentam implantar estratégias de acesso. Um programa na Escócia, por exemplo, fornece acesso antecipado aos pacientes a novos medicamentos por três anos. Enquanto isso, coleta informações sobre a eficácia e, só diante da comprovação, a distribuição passa a ser contínua.
Mas há questões anteriores que são pouco discutidas. Uma é o alto preço desses medicamentos chamados de órfãos, criados para tratar doenças que, em tese, proporcionariam pouco retorno sobre o investimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D) feito por farmacêuticas.
A justificativa da indústria é que essas drogas incorrem em custos de P&D semelhantes às voltadas a doenças comuns, mas com menor número de usuários potenciais para garantir o retorno econômico.
Contudo, um estudo da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), publicado na Revista de Saúde Pública, questiona esse argumento. Segundo os pesquisadores, a venda de drogas para doenças raras tem se tornado por vezes mais lucrativa que a dos remédios tradicionais devido à concessão de benefícios governamentais, como exclusividade de mercado por períodos mais longos, incentivos fiscais, apoio para pesquisas específicas e aprovação para venda em tempo menor e com critérios menos exigentes.
O trabalho também cita o fato de o custo dos ensaios clínicos para medicamentos órfãos ser bastante inferior ao de drogas para outras doenças, porque o número de pacientes envolvidos é necessariamente muito menor. Pequenos estudos clínicos e ausência de tratamentos alternativos colocam esses órfãos em vantagem, quando submetidos a revisões regulatórias.
Para o médico Luis Cláudio Correia, especialista em medicina baseada em evidências, não deveria ser assim. “Todo ensaio clínico representa um esforço imenso, a superação de obstáculos, e a doença ser menos frequente é só uma das barreiras superáveis. Considerando a população inteira, o número de pessoas com doenças raras não é baixo. Usualmente, elas estão reunidas em ambulatórios de referência, vistas por médicos superespecializados, entrosados na comunidade científica.”
A dificuldade de comprovar boa relação de custo e efetividade é uma razão do entrave na incorporação dos remédios nos sistemas de saúde. Para Correia, é preciso pensar no tamanho do benefício antes de se pensar no custo. “O problema do custo/efetividade é o denominador, ou seja, a baixa efetividade. Drogas de grande benefício, mesmo caras, tornam-se custo-efetivas.”
É comum, diz ele, pagar-se caro por tratamentos de mínimo efeito, quando comparados ao tradicional. “O cerne da questão não está em eliminar tratamentos caros, mas sim os benefícios modestos, que se tornam caros por serem modestos.”
A judicialização tem sido estratégia de acesso a medicamentos para doenças raras que não têm registros no país, segundo o estudo da Uerj.
Os pesquisadores dizem que as farmacêuticas usam de relações de grupos de pacientes e profissionais de saúde para expandir a participação no mercado, terminando por forçar a incorporação do medicamento no sistema de saúde.
O trabalho examinou as aquisições de eculizumabe, um anticorpo monoclonal para tratamento de duas doenças raras que custou ao SUS, no período de 11 anos, R$ 2,44 bilhões. Todas as compras foram sem licitação para cumprir demandas judiciais.
Como enfrentar esses conflitos de interesses?
Para Correia, não basta que uma droga traga benefício para ser aprovada. Se o benefício for muito modesto, vale a pena pagar? “O preço não é apenas monetário, há outros custos: a falsa esperança, o desespero de um pai que não consegue um remédio de alto custo (que pouca diferença faria), efeitos adversos. A vida é um processo de decisão, baseada em probabilidade e economia: custo/benefício.”
Segundo Correia, há tratamentos de alto custo e grandes benefícios que devem ser instituídos nos sistemas de saúde, se possível. Mas toda análise deveria ser isenta de conflitos de interesses.
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