Folha de S.Paulo
Jornalista: Amarílis Lage
07/03/20 - A inteligência artificial é a mais nova aliada da medicina no diagnóstico de doenças raras. Ferramentas que ajudam a analisar um grande volume de dados tornam possível identificar padrões em testes genéticos e permitem o esclarecimento de exames que até pouco tempo atrás eram inconclusivos.
Para entender como a tecnologia pode revolucionar o tratamento de pacientes raros, é preciso entender a raiz do problema. Uma pessoa tem aproximadamente 22 mil genes. Em exames, quando o genoma de alguém é comparado a um código de referência, são encontradas cerca de 60 mil variações.
Essa diversidade é normal, de acordo com o geneticista Caio Robledo Quaio, do Fleury Medicina e Saúde.
Mas, eventualmente, uma dessas variações compromete o funcionamento do organismo, gerando uma doença. A questão é: como identificar, dentre milhares de variações, aquela que deu origem ao problema? É aí que entram as novas ferramentas.
“Antes, quando o médico achava que a doença era genética, ele examinava um ponto do DNA do paciente que podia estar relacionado àquele problema”, diz Quaio.
Em 2010, veio uma revolução: o sequenciamento de nova geração, que é feito em menos de um mês e permite o estudo de milhões de pontos do DNA ao mesmo tempo. “Isso gera muitos dados, e precisamos da inteligência artificial para avaliar todas as etapas de modo eficaz”, completa.
Esse processo tem ampliado significativamente, e de maneira veloz, o conhecimento acerca de variações genéticas e sua associação com doenças.
Segundo Quaio, graças a isso, exames feitos há um ou dois anos que foram considerados inconclusivos estão sendo esclarecidos agora.
“Vivenciei essa situação recentemente. Fizemos a avaliação do exoma de um paciente em 2018, e vimos variações genéticas suspeitas, mas não fechamos diagnóstico. Na reanálise, semana passada, achamos uma nova pesquisa, divulgada no fim de 2019, com duas dessas variações.”
Por enquanto, o sequenciamento genético e a análise por inteligência artificial ainda são inacessíveis para a maioria da população. Uma iniciativa que une governo e setor privado pode começar a mudar esse quadro.
Em dezembro do ano passado, o Ministério da Saúde e o Hospital Albert Einstein, de São Paulo, firmaram um acordo para a implementação do projeto Genoma Raro.
A iniciativa, orçada em cerca de R$ 34 milhões, vai realizar, ao longo deste ano, o sequenciamento de 1.500 genomas completos, de brasileiros com doenças raras de suposta base genética ou com risco hereditário de câncer. A ideia é otimizar o diagnóstico dessas enfermidades no futuro.
“Já existem projetos amplos de rastreamento em outros países, como o All of Us, nos Estados Unidos, e o Genomic England, no Reino Unido”, diz Murilo Cervato, gerente de inovação do Einstein e CEO do VarStation, plataforma de sequenciamento genômico criada pela equipe do hospital.
Na iniciativa norte-americana, a meta é sequenciar um milhão de genomas e, por meio de ferramentas de inteligência artificial, identificar quais são as variantes comuns, ainda não reportadas nos bancos de dados.
A expectativa é que essas informações abram caminho para novas opções de tratamento, tanto para doenças comuns quanto para raras.
“Durante muito tempo, a genética era uma área mais associada ao diagnóstico, ela não trazia muitas perspectivas de tratamento. Mas isso tem mudado. Já existem terapias específicas e terapias gênicas com bons resultados para doenças em várias áreas”, afirma a geneticista Têmis Félix, presidente da SBGM (Sociedade Brasileira de Genética Médica e Genômica).
Além disso, a genética também vem ajudando a entender como cada pessoa metaboliza determinadas substâncias, o que permite uma abordagem cada vez mais individualizada e precisa.
“Se vemos que um paciente não metaboliza muito bem um remédio, podemos prescrever uma dosagem maior para obter o efeito desejado”, comenta Cervato, do Einstein.
Foi pensando na medicina que gostaria de ver no futuro, com diagnóstico mais rápido e tratamentos personalizados, que Dimas Timmers, portador de uma doença rara, decidiu colocar as mãos na massa (ou melhor, no teclado do computador) e criou a startup Nindoo, que facilita o uso de inteligência artificial.
“Um médico pode utilizar nossa plataforma para encontrar artigos relacionados ao exame genético de um paciente, facilitando o diagnóstico”, diz Timmers.
A trajetória do empresário se alinha à de muitos outros pacientes com doenças raras. Ele foi tratado para epilepsia até os 15 anos, quando os sintomas sumiram. Dois anos depois, voltou a procurar ajuda médica devido aos espasmos musculares que o acometiam.
“Fui a 20 médicos, e não achavam a causa.” Timmers estava com 32 anos quando uma neurologista descobriu o que era: distonia mioclônica.
Toda essa vivência despertou seu interesse para a associação entre tecnologia, área em que atua, e a medicina. Hoje, ele também cria projetos específicos para centros médicos e associações.
“A gente está saindo de uma era massificada, em que todo mundo era tratado de forma igual, para uma em que o indivíduo é entendido como único. E a inteligência artificial contribui para isso.”
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