Profissional de saúde, que usa traje especial de proteção contra ebola, prepara-se para entrar em área de cuidados de emergência no Congo - Baz Ratner/Reuters
Terapias salvaram cerca de 90% dos pacientes recentemente infectados, uma reviravolta nas décadas de luta contra o vírus
Donald G. McNeil Jr.
NOVA YORK | THE NEW YORK TIMES
Em um desdobramento que transforma a luta contra o ebola, dois tratamentos experimentais estão funcionando tão bem que agora serão oferecidos a todos os pacientes na República Democrática do Congo, anunciaram cientistas na segunda-feira (12).
Os tratamentos baseados em anticorpos são bastante poderosos —"agora é possível afirmar que 90% dos pacientes podem sair curados do tratamento", disse um cientista— e despertam a esperança de que a desastrosa epidemia no leste do Congo possa ser detida e futuros surtos da doença contidos com mais facilidade.
Oferecer aos pacientes uma cura real "pode contribuir para que se sintam mais confortáveis em buscar cuidados mais cedo", disse o médico Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos, que se uniu à Organização Mundial da Saúde (OMS) e ao governo congolês para fazer o anúncio.
A perspectiva deve reduzir consideravelmente a aura de terror que cerca o ebola, um vírus de febre hemorrágica cuja reputação foi determinada por sua letalidade e incurabilidade. Desde que foi descoberto, 40 anos atrás, o vírus vem apavorando a África. Até agora, muita gente acreditava que contrair o ebola era uma sentença de morte solitária, em meio a estrangeiros vestidos em trajes espaciais, e uma condenação ao sepultamento em uma bolsa plástica cheia de alvejante.
O medo do vírus e a desconfiança quanto aos profissionais de saúde foram obstáculos importantes no combate à difusão do ebola pelo leste do Congo, onde famílias aterrorizadas muitas vezes escondem pacientes e até atacam as equipes médicas.
Se a notícia de que existe uma cura for difundida, as pessoas podem começar a procurar ajuda mais cedo no progresso da doença, o que seria crucial para salvar vidas e impedir que a doença se espalhe.
"Quanto mais pudermos aprender sobre esses dois tratamentos, mais próximos estaremos de transformar o ebola de uma doença aterrorizante em uma passível de prevenção e tratamento", disse o médico Jeremy Farrar, diretor do Wellcome Trust e copresidente de um comitê da OMS que avalia terapias para o ebola.
A epidemia, que foi declarada uma emergência de saúde pública no mês passado, já infectou 2,8 mil pacientes, pelo que se sabe até agora, e matou mais de 1,8 mil deles, de acordo com a OMS.
Os novos tratamentos experimentais, conhecidos como REGN-EB3 e mAb114, são coquetéis de anticorpos monoclonais infundidos intravenosamente no sangue.
O REGN-EB3 é produzido pela Regeneron Pharmaceuticals, de Tarrytown, Nova York, que também produz outros tratamentos baseados em anticorpos. O instituto de Fauci, parte dos Institutos Nacionais de Saúde americanos, desenvolveu o mAb114 e licenciou sua produção no ano passado para a Ridgeback Biotherapeutics, uma companhia de Miami.
Anticorpos são proteínas em formato de Y normalmente produzidas pelo sistema imunológico, que se acumulam nas crostas externas de partículas virais, impedindo-as de penetrar em células. Os dois novos tratamentos são versões sintéticas desenvolvidas em condições de laboratório.
As duas novas terapias estão entre as quatro avaliadas em um teste clínico que envolve 700 pacientes e foi iniciado em novembro. As duas funcionaram tão bem que uma reunião de comitê na sexta-feira para examinar resultados preliminares sobre os primeiros 499 pacientes recomendou imediatamente que os dois outros tratamentos, o ZMapp, da Mapp Biopharmaceutical, e o remdesivir, da Gilead Sciences, tivessem seu desenvolvimento suspenso. Todos os pacientes agora receberão ou o remédio da Regeneron ou o da Ridgeback, disse Fauci.
Entre os pacientes que foram levados aos centros de tratamento apresentando baixa carga viral —o que sugere que estavam infectados há poucos dias—, apenas 6% e 11% dos tratados com o remédio da Regeneron e com o da Ridgeback, respectivamente, morreram, disse Fauci.
Em contraste, 33% das pessoas que receberam o antiviral da Gilead morreram, assim como 24% dos que receberam o ZMapp, um coquetel de anticorpos monoclonais mais antigo que já havia sido testado brevemente durante o surto de ebola na África Ocidental em 2014.
O índice de mortalidade entre os pacientes não tratados e não vacinados no atual surto é estimado em mais de 70%, disse o médico Michael Ryan, diretor de resposta de emergência da OMS.
A diferença nos índices de mortalidade entre os tratados com o produto da Regeneron e o da Ridgeback é considerada baixa demais para ser estatisticamente relevante, e por isso ambos continuarão a ser usados, disse Fauci.
A Regeneron e a Ridgeback disseram que são capazes de produzir doses suficientes para tratar todos os pacientes, segundo Fauci. É útil ter duas opções caso problemas de suprimento se desenvolvam com um ou com o outro remédio, disse Ryan.
O médico Jean-Jacques Muyembe, diretor do Instituto Nacional de Pesquisa Biomédica do Congo, acompanhou Fauci e Ryan no anúncio dos resultados do teste.
Muyembe disse que, psicologicamente, a notícia de uma cura mudaria o curso do surto de ebola atual, que é o pior dos dez que o Congo já enfrentou.
Os moradores do leste do Congo, muitos deles refugiados traumatizados por guerras e genocídios na região, desconfiam profundamente do governo do país, na capital Kinshasa. Correm rumores de que o ebola não existe, ou que as equipes de tratamento roubam sangue e órgãos das vítimas para feitiçaria. Centros de tratamento foram atacados a tiros ou incendiados.
"Agora seremos capazes de afirmar que 90% dos pacientes podem sair curados do tratamento, e as pessoas começarão a acreditar e desenvolver confiança", disse Muyembe. "Os primeiros a transmitir essa informação serão os pacientes mesmo."
Muyembe, 77, a quem Fauci descreveu como um "verdadeiro herói"., vem combatendo o ebola desde que a doença surgiu, no então Zaire, em 1976.
Décadas atrás, ele foi pioneiro no uso de soro do sangue de sobreviventes —que contém anticorpos— para salvar pacientes. Os dois tratamentos experimentais que se provaram bem-sucedidos na semana passada descendem em parte de suas pesquisas originais.
Perguntado sobre como se sentia com relação a isso, em uma entrevista coletiva telefônica, Muyembe disse, por meio de um tradutor, que "me sinto um pouco sentimental. Tive essa ideia muito tempo atrás e esperei pacientemente por isso. Estou muito feliz, mal posso acreditar".
O tratamento da Regeneron —o que apresentou melhores resultados— foi adicionado ao teste clínico só no último minuto, depois de ser reconsiderado por um painel de especialistas da OMS, disse a companhia.
"Estamos muito comovidos por saber que nossa terapia está ajudando a salvar vidas", disse Neil Stahl, vice-presidente executivo de pesquisa da Regeneron. "Nossa equipe trabalhou sem descanso para descobrir, desenvolver e produzir o REGN-EB3 em tempo recorde".
Os quatro tratamentos foram testados em unidades operadas por três organizações médicas assistenciais: Médicos Sem Fronteiras, Alima e Corpo Médico Internacional.
Os testes formais, iniciados em novembro, eram conhecidos como teste PALM, ou Pamoja Tulinde Maisha, que significa "salvar vidas juntos", no idioma suaíli. Os pacientes foram designados aleatoriamente para um dos quatro tratamentos.
Antes disso, alguns pacientes estavam recebendo qualquer que fosse o tratamento disponível. Testes iniciais com 113 pacientes, cujos resultados foram divulgados em outubro, indicavam que os tratamentos eram capazes de reduzir substancialmente os índices de mortalidade se aplicados cedo, mas não havia dados que identificassem quais deles estavam funcionando melhor.
O desenvolvimento dos novos tratamentos foi apoiado pela Autoridade de Pesquisa e Desenvolvimento Biomédico Avançado, uma divisão do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos cuja missão é combater ameaças químicas, biológicas, radiológicas e nucleares, e doenças pandêmicas.
Uma porta-voz da Regeneron disse que a empresa "ainda não havia considerado preços", mas que por enquanto estava oferecendo o tratamento gratuitamente para propósitos de "uso compassivo".
A despeito da disponibilidade de uma vacina altamente efetiva e de indicações de que os tratamentos funcionam, a epidemia escapou ao controle no Congo por conta da violência na zona de conflito em que o vírus está enraizado.
O Departamento de Estado proibiu pessoal do governo americano de trabalhar nas linhas de frente, o inclui especialistas do Centro de Controle e Prevenção de Doenças que desempenharam papeis cruciais na derrota de epidemias anteriores de ebola.
A resposta também foi severamente prejudicada por uma disputa de poder dentro do governo congolês.
A disputa parecia a caminho de uma solução em 26 de julho, quando o ministro da saúde, o médico Oly Ilunga, renunciou em protesto contra a decisão do presidente Felix Tshisekedi de atribuir a responsabilidade pelo combate à epidemia a um comitê de especialistas presidido por Muyembe.
Em abril, um comitê diferente encabeçado por Muyembe divulgou um relatório altamente crítico sobre a condução do combate à epidemia por Ilunga e sugeriu muitas mudanças, entre as quais lançar uma segunda vacina e empreender esforços para conquistar a confiança dos cidadãos por meio da oferta de alimentos, cuidados médicos de rotina e vacinas contra outras doenças, como o sarampo.
Tradução de Paulo Migliacci
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