Colunusta: Drauzio Varela*
27/10/19 - Todo mundo tem alguém com pressão alta na família.
É uma epidemia. Não poupa ricos, pobres, velhos, moços, magros, gordos, negros ou brancos. Como em qualquer outra, sofre mais quem não têm dinheiro nem acesso à assistência médica de qualidade.
A doença é tão prevalente, que já perdemos o respeito por ela. Encontro o amigo, pergunto pela mãe, ele responde: “Está ótima, aquele jeitinho dela, pressão alta, meio chata de controlar...”.
Sinto vontade de dizer: “Sua mãe está mal, eventualmente péssima”.
Pressão descontrolada traz complicações graves: infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral, insuficiência renal crônica e insuficiência cardíaca entre outras.
O desconhecimento faz menosprezar os riscos, conduta que não poupa os médicos, costumeiramente apegados aos diminutivos quando não querem preocupar seus pacientes: “Sua pressão está um pouquinho alta, vou receitar um remedinho”.
Quem recebe o tal remedinho sem ter noção clara do mal que o aflige desconsidera a importância do tratamento e do controle sistemático dos níveis pressóricos. As consequências são:
1. Não é todos os dias que os hipertensos lembram de tomar os comprimidos. Quando viajam, esquecem de colocá-los na bagagem. Alguns tomam apenas quando sentem dor de cabeça ou tontura.
2. Abandono do tratamento por conta própria assim que surgem os primeiros efeitos colaterais, entre os quais a tosse seca associada a uma das classes de drogas e, especialmente, a dificuldade de ereção relacionada com outra. Sem contar aqueles prontos a jogar a culpa de qualquer mal-estar nas costas das medicações.
3. Como ninguém gosta de tomar remédio pelo resto da vida, ao constatar que a pressão caiu para 12 x 8, muitos se consideram curados e param com tudo.
Para agravar, existe a crença generalizada de que pressão alta provoca dores de cabeça, dor na nunca, pontos brilhantes na visão, tonturas e outros achaques. Quem não sente nada não vê razão para se tratar. A fama de matadora silenciosa fica restrita ao ambiente médico.
Com base em aproximações estatísticas, foi criada a regra empírica dos 50%. Segundo ela, 50% dos hipertensos ignoram sua condição. Dos que receberam o diagnóstico, apenas 50% começam a tomar medicamentos. Destes, 50% não aderem a eles ou o fazem com irregularidade. Como a matemática nos ensina que 50% de 50% de 50% são 12,5%, concluímos que apenas a minoria segue o tratamento com disciplina.
Entre estes, no entanto, muitos não conseguirão manter a pressão controlada porque as drogas prescritas podem ser ineficientes ou perder a eficácia com o tempo.
Esse é o cenário responsável pelas complicações cardiovasculares e renais que superlotam as unidades de pronto-atendimento e os serviços de cardiologia, neurologia e nefrologia, drenando recursos do SUS e dos planos de saúde.
Nós, médicos, imaginamos que os hipertensos tomarão a medicação prescrita e farão medições periódicas da pressão para nos mostrar na consulta seguinte. De ilusão também se vive. Meses mais tarde, eles retornam —quando retornam—, com informações tão imprecisas que acabamos sem dados para avaliar o resultado do tratamento.
Não somos nós os profissionais indicados para acompanhar a evolução dos hipertensos. As enfermeiras fazem esse trabalho com muito mais competência. Com um aparelho em casa e acesso ao WhatsApp, o paciente pode enviar a elas os controles semanais.
Tem cabimento uma pessoa hipertensa não ter o aparelho e passar semanas sem uma medição sequer? Os aparelhos estão cada vez mais baratos, o SUS tem condição de entregá-los aos mais pobres.
As farmácias espalhadas pelos quatro cantos do Brasil são obrigadas a manter em suas dependências um farmacêutico diplomado. Muitas vezes, um profissional que passou quatro anos na universidade acaba relegado a formalidades burocráticas, quando poderia orientar os pacientes a anotar os valores da pressão, ensiná-los a usar o aparelho, aconselhá-los a aderir à medicação e a voltar ao médico quando houvesse picos hipertensivos.
A farmácia é o lugar ideal para fazer esses controles, pela simples razão de que é lá que as pessoas compram os anti-hipertensivos todos os meses.
Nós, médicos, deveríamos deixar de lado o corporativismo antiquado, praga que infesta nossa profissão, e entregar para outros profissionais o trabalho que não temos condição de realizar ou que fazemos mal feito.
(*) Drauzio Varella é Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.
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