Grau de inflamação nos camundongos foi medida por meio do IVIS (In vivo imaging system)
(imagem: Divulgação)
Karina Toledo | Agência FAPESP – Em pacientes com anemia falciforme, é comum a ocorrência de um fenômeno conhecido como hemólise – caracterizado pela destruição das células vermelhas do sangue, as hemácias, e a consequente liberação da proteína hemoglobina existente em seu interior na circulação.
Estudos recentes têm mostrado que esse fenômeno contribui fortemente para o agravamento da doença. Quando ocorre de maneira repetida, pode levar a um estado inflamatório crônico e favorecer processos vaso-oclusivos, que além de intensas crises de dor podem causar infartos em qualquer parte do corpo e lesionar diversos órgãos.
Em um artigo destacado no editorial da edição do dia 6 de agosto da revista Blood, pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) mostraram que algumas das complicações decorrentes da hemólise podem ser prevenidas com uma droga chamada hidroxiureia, já usada no tratamento crônico da anemia falciforme, mas com um propósito diferente.
“Acreditamos que a hidroxiureia está sendo subutilizada. Pretendemos fazer um ensaio clínico para avaliar a eficácia desse fármaco no combate à inflamação aguda induzida pela hemólise e no tratamento de crises vaso-oclusivas”, afirmou Nicola Conran, pesquisadora do Centro de Hematologia e Hemoterapia (Hemocentro) da Unicamp e coautora do artigo.
A pesquisa foi conduzida com apoio da FAPESP durante o pós-doutorado de Camila Bononi de Almeida, supervisionado por Conran, no âmbito de um Projeto Temático coordenado pelo professor da Unicamp Fernando Ferreira Costa.
Conforme explicou Conran, a anemia falciforme é uma doença hereditária caracterizada por uma alteração genética na hemoglobina, proteína que dá a coloração avermelhada ao sangue e é responsável pelo transporte do oxigênio pelo sistema circulatório.
Essa mutação faz com que a hemoglobina polimerize depois que o oxigênio é liberado e, consequentemente, as hemácias assumam a forma de foice. As células deformadas se tornam rígidas e propensas a aderir ao endotélio, dificultando a circulação do sangue.
A hidroxiureia tem sido usada no tratamento crônico da doença com o objetivo de aumentar a produção de outra proteína conhecida como hemoglobina fetal (normalmente produzida no período de vida uterina), capaz de diminuir a polimerização da hemoglobina geneticamente alterada e reduzir o risco de vaso-oclusão.
Em trabalhos anteriores, o grupo do Hemocentro já havia demonstrado em camundongos com anemia falciforme que a hidroxiureia, em dose mais elevada, era eficaz também no tratamento agudo de crises vaso-oclusivas (leia mais em agencia.fapesp.br/16356/), por ativar uma via de sinalização celular dependente de óxido nítrico que facilita a vasodilatação, dificulta a interação entre os glóbulos brancos e vermelhos e, consequentemente, sua adesão ao endotélio.
Neste novo trabalho, por meio de experimentos com camundongos sadios, o grupo mostrou que esse efeito “doador de óxido nítrico” da hidroxiureia pode ser benéfico também para combater a inflamação causada pela hemólise.
“Quando a hemoglobina é liberada na circulação, ela consome o óxido nítrico existente no interior do vaso e isso causa vasoconstrição, dificultando o fluxo sanguíneo. Nossos experimentos mostraram que esse chamado processo de hiper-hemólise também leva a um processo inflamatório sistêmico quase que imediato, provavelmente pelo consumo do óxido nítrico”, contou Conran.
O experimento
Para induzir a hemólise em animais sadios, os pesquisadores injetaram água pela via intravenosa. O rompimento das hemácias provocou, em cerca de apenas 15 minutos, um estado inflamatório sistêmico comparável ao observado no grupo de animais que não recebeu o estímulo hemolítico da água, mas recebeu uma injeção de TNFα – uma citocina reconhecida na literatura científica por seu grande potencial de causar inflamação.
O grau de inflamação foi mensurado por meio de uma tecnologia conhecida como IVIS (In vivo imaging system, ou sistema de imagem in vivo), graças a uma colaboração com a equipe do Centro de Terapia Celular (CTC), um dos CEPIDs apoiados pela FAPESP e sediado na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (FMRP-USP).
O método consiste em injetar nos animais uma molécula (sonda) capaz de reconhecer e se ligar a substâncias produzidas por células de defesa ativadas. Quando ocorre a ligação, é emitida uma luminescência que pode ser quantificada. Quanto maior for o número de leucócitos e neutrófilos ativados, maior é a emissão de luz.
“Para ter certeza de que estava ocorrendo a hemólise, dosamos o nível de hemoglobina no plasma sanguíneo dos roedores e vimos que ele aumentava após a injeção de água, ficando equivalente ao observado em animais portadores de anemia falciforme”, contou Almeida.
Já a inflamação vascular, quantificada pela adesão das células brancas do sangue ao endotélio, foi avaliada por uma técnica de microscopia intravital. “Observamos a circulação em um tecido translúcido que envolve o saco escrotal do camundongo. Isso permite ver a migração de células para o local inflamado e sua adesão à parede do vaso”, disse Almeida.
Em um outro grupo de camundongos, os pesquisadores administraram a hidroxiureia ao mesmo tempo em que injetaram água na corrente sanguínea. Os testes foram repetidos e os resultados indicaram que, embora ocorra a destruição das hemácias e a liberação da hemoglobina no sangue, o processo inflamatório foi significativamente inibido, bem como a consequente adesão de células à parede vascular.
Leque de possibilidades
De acordo com Conran, além de defeitos genéticos na hemoglobina como é o caso da anemia falciforme, outros fatores podem causar a destruição de hemácias, entre eles determinadas drogas, traumas físicos, transfusões com tipo sanguíneo incompatível, doenças como malária, talassemia, sepse e outras.
“É possível que, em várias dessas condições, o uso de hidroxiureia possa ajudar a combater as complicações decorrentes da hemólise. Mas isso é algo que ainda precisa ser melhor explorado. Esse trabalho abre um grande leque para novas investigações”, concluiu Conran.
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