Por ICTQ
Uma pequena farmácia, em um bucólico bairro de Anápolis-GO, assiste impotente à megaconstrução de um estabelecimento da maior rede de farmácias do país. Você já se deparou com cenas semelhantes em sua cidade? Então, bem-vindo ao campo de batalha do varejo farmacêutico no Brasil.
Em uma disputa digna de Davi e Golias, as pequenas farmácias buscam alternativas para sobreviver à concorrência de grandes redes do varejo farmacêutico. Na luta pela saúde do negócio, a agilidade, personalização e associativismo aparecem como armas eficazes dos pequenos. Por outro lado, as grandes redes avançam se aproveitando das fraquezas deles, capturando vendas, inclusive em pontos já conhecidos e consolidados pelos primeiros.
Batalha das farmácias independentes
A dificuldade de competir com as grandes redes levou, em 1997, um grupo de cerca de 50 donos de drogarias à decisão de unificar esforços em uma associação de empresários. A Agafarma, que atua no mercado farmacêutico com 365 lojas no Rio Grande do Sul, garantiu aos associados poder de compra e de mídia. "Foi uma quebra de paradigmas. Ex-concorrentes, independentes entre si, se aliaram sob a mesma bandeira", diz José Bloci. Segundo ele, que é dono de duas unidades em Porto Alegre, a conquista da padronização também foi importante para os empresários.
As decisões cotidianas da associação são tomadas por uma diretoria, eleita entre os integrantes a cada dois anos. Ações fundamentais para o rumo da organização, no entanto, são votadas pelos associados em assembleias marcadas, em média, a cada três meses. Há, ainda, os conselhos ético e fiscal, que vistoriam as atividades administrativas. "Em grupo temos também um laboratório, criando produtos. E cinco são exclusivos da marca", conta o gestor da Agafarma. Os associados mantêm ainda uma cooperativa para reduzir os custos na compra de medicamentos. "Estamos em franco crescimento. Temos um setor em constante expansão e, mensalmente, recebemos de dois a três processos pedindo a associação", diz.
A Federação Brasileira das Redes Associativistas e Independentes de Farmácias (Febrafar) é outra organização que fomenta o empreendedorismo dos pequenos e médios varejistas do setor farmacêutico. A associação indica que viabiliza o acesso às novas tecnologias que dinamizam o negócio das farmácias associadas. A entidade está presente em 48% dos munícipios brasileiros, o que representa o alcance a 78% da população brasileira. Segundo dados da Febrafar, atualmente são 56 pequenas redes e farmácias independentes associadas, com 9.194 lojas afiliadas, presentes em 2.655, dos 5.570 municípios brasileiros, em 26 estados.
Em relação à população atingida nessas cidades, a representatividade se torna ainda maior, sendo que a soma da população dessas cidades atinge o número de 161 milhões de pessoas, enquanto todo o país possui 206 milhões de habitantes. “O fato de atingirmos esse grande número populacional se deve ao fato de possuirmos uma representação expressiva em cidades com maior agrupamento de pessoas, por exemplo, 19% das nossas farmácias estão em municípios com mais de 400 mil habitantes”, explica o presidente da Febrafar, Edison Tamascia.
Os números apresentados demonstram a força do associativismo para as pequenas farmácias e como esse modelo pode ir muito além das compras coletivas. “Hoje a Febrafar fornece às redes associadas ferramentas modernas de gestão das farmácias. Também se tornou uma fonte constante de informações e capacitação que possibilitam que os gestores das redes e das lojas estejam aptos a competir nesse importante mercado”, detalha Edison Tamascia.
Do outro lado do campo de batalha
Do lado oposto ao das pequenas farmácias está a Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias – Abrafarma, que possui 26 redes distribuídas em todo o Brasil. De janeiro a novembro de 2016 houve um crescimento significativo nas redes; segundo a entidade, o faturamento total das drogarias e farmácias associadas foi de R$ 41 milhões, e isso representou um crescimento de 8,84% sobre o mesmo período de 2016.
O presidente da entidade, Sergio Mena Barreto, aponta que em 2017 o setor cresceu entre 9% e 10% e ele atribui este crescimento à abertura de novos pontos de venda e maior ocupação de mercado, com ganho de market share. “É obvio que essa estratégia leva a uma disputa nos mercados em que já atuamos, com possível canibalização das vendas de lojas já maduras”, acrescenta.
Atualmente existem 89.071 farmácias no Brasil, e a Abrafarma abrange 7.169, o que representa aproximadamente 8%. A entidade detém ainda 41,6% do comércio de medicamentos no país. “A nossa previsão é ultrapassar o crescimento de 10% nas vendas em 2018. Como a implantação dos serviços de vacinação demanda ao menos seis/oito meses de preparação, incluindo estrutura física e treinamento de pessoal, provavelmente as farmácias só poderão aproveitar a temporada de gripe de 2019. Resta-nos, então, apostar na boa gestão de estoques, para evitar ruptura e capturar as vendas de farmácias menores em função da melhor eficiência, bem como novas vendas advindas do lançamento de produtos inovadores que venham a conquistar os consumidores”, ressalta Barreto.
Expansão
Contudo, os dados que mais chamam a atenção estão relacionados ao número de abertura de novas lojas filiadas às grandes redes. Estudos apontam que o aumento na quantidade de novas farmácias é reflexo da busca crescente dos brasileiros por mais oferta e qualidade em serviços e produtos. É uma demanda crescente que vem se adequando aos tempos modernos. “O Brasil está envelhecendo e o sistema de saúde público não consegue absorver tanta demanda em um território imenso. Já as farmácias têm plenas condições de agirem como zeladoras do bem-estar populacional, especialmente pela sua proximidade com o cidadão. Não podemos ignorar a abrangência física das grandes redes, que possuem mais de 7 mil lojas espalhadas por 795 municípios brasileiros, alcançando regiões carentes em assistência médica e, até mesmo, com pouca atuação do governo. Por isso, defendo que a prestação de serviço à população é o que deve determinar o número”, afirma Barreto.
Para o presidente da Abrafarma, os empreendedores têm olhado para o futuro, profissionalizando cada vez mais sua gestão, unindo esforços e conhecimentos. “Os serviços farmacêuticos são justamente uma oportunidade que enxergamos para estimular a adesão ao tratamento de doenças crônicas, por exemplo. A própria OMS estima que 50% das pessoas abandonam o tratamento nos seis meses iniciais de uma doença crônica. O farmacêutico, com uso de tecnologia de identificação e acompanhamento, pode atuar de modo a evitar o abandono clássico. Somente isso representa uma oportunidade enorme para os negócios de fabricantes, distribuidores e varejistas. É um ganho também para a sociedade: com pessoas que se tratam corretamente, o sistema de saúde fica menos sobrecarregado, pois não há recorrências de agravos que são evitáveis, e os recursos serão destinados para áreas mais críticas”, acrescenta Barreto.
Projeções e cenários da batalha para 2018
Segundo informações da Febrafar, um importante dado para o mercado em 2018 é que já estão sendo feitas as primeiras projeções do aumento de medicamentos para o próximo ano, que não deverá ser muito expressivo. Outros pontos em relação ao próximo ano que deverão movimentar o mercado são questões políticas que podem impactar diretamente o setor farmacêutico, como é o caso das negociações relacionadas ao programa “Aqui Tem Farmácia Popular”.
Entretanto, Tamascia explica que essa tendência de alta nas vendas deverá ser mantida em 2018. “Acredito que manteremos a faixa de crescimento obtida neste ano, fato que se deve a diversos fatores, dentre os quais o de não projetar um grande aumento nos preços dos medicamentos”, destaca.
Contudo, o presidente da Febrafar alerta que é preciso muito cuidado por parte dos administradores das farmácias, principalmente das independentes, em função de esse mercado ser cada vez mais desafiador. “O que se observa é um intenso movimento das grandes redes, com a abertura de novas lojas. Os proprietários de farmácias possuem um desafio enorme pela frente, precisando se adaptar para as novas características que o mercado impõe. O que se observa é que o varejo independente está encolhendo e não reagindo à altura. O que é muito preocupante. Assim, reforço que o caminho para essas lojas está no associativismo, desde que essa adesão ocorra de forma a realmente utilizar os benefícios e qualificação para a gestão”, destaca Tamascia.
O varejo farmacêutico deve sofrer ainda com o aumento da complexidade e interação com os diversos públicos desse complexo mercado. Para a professora do ICTQ Giovanna Dimitrov, a tendência do mercado é ampliar o número de lojas, pois, assim, elas diminuem os custos fixos. Ela explica que isso deve ser enfrentado com bons olhos porque existem diversas estratégias que os pequenos estabelecimentos devem adotar para permanecerem no mercado. “O atendimento individualizado é um diferencial nas empresas menores. É onde o cliente percebe o valor real do serviço.”
Segundo a professora e consultora, o cliente não percebe somente o preço do produto; as grandes redes possuem poder de compra para oferecer bons descontos, mas o cliente prefere pagar pelo serviço. “As pessoas se preocupam com o valor, mas, quando falamos de serviço, o preço perde o valor. O que determina eu ir à farmácia ou drogaria é a confiança que ela apresenta no serviço que ela presta”, ressalta a consultora.
De acordo com Dimitrov, as empresas menores enfrentam muitos desafios, e na opinião dela não existem culpados, o mercado é assim, competitivo. A livre concorrência tem como consequência a melhoria e especialização dos serviços prestados nos estabelecimentos. Ela afirma que as empresas de pequeno porte podem se especializar em determinados serviços. “Aplicação de injetável não era feita nas grandes empresas, estamos vendo agora esta demanda, mas não sabemos se elas vão conseguir fazer a prestação desse serviço por muito tempo, por ser algo muito especializado, o que é característica de empresas menores”, aponta a farmacêutica.
Na concepção da professora do ICTQ, o que há de mais complicado e predatório no mercado não é a concorrência, e sim os impostos. Ela também não acredita que a Lei de Zoneamento resolva esta questão da competitividade. “Deveria haver uma adequação consensual e digna para as pequenas empresas. As empresas devem criar competitividade por meio dos serviços que oferecem. E, além disso, muitas delas encontram meios de burlar a Lei de Zoneamento. A agilidade e a qualidade na prestação do serviço são as duas grandes vantagens que o pequeno empreendimento sempre terá”, comenta.
Giovanna Dimitrov acredita que a grande concorrência existe mais com relação às compras ON-LINE do que propriamente entre as lojas físicas. “A pesquisa pela internet para encontrar o melhor preço é muito maior do que a pesquisa em lojas físicas.” Porém, se você pensa que as grandes redes possuem muitas vantagens por terem um grande poder de compra, você está equivocado. Giovanna ressalta que é possível, através de uma associação de pequenos estabelecimentos, fazer negociações tão vantajosas quanto a adotada pelas redes. “Outra dica é utilizar uma lista de preços, trabalhar com negociações por molécula. Com isso elas conseguem preço por produto; é fazer um estudo na região, avaliar a necessidade e a classe do consumidor. Associação ou cooperativa de compra são grandes aliados estratégicos para o pequeno empreendimento farmacêutico”, indica.
Sete campos estratégicos na batalha entre pequenas farmácias e grandes redes
1 – Gestão de estoques: Enquanto as grandes redes são premiadas pela ruptura zero em suas lojas, as pequenas farmácias encontram dificuldades na manutenção de grandes estoques e diversidade no mix de produtos ofertados.
2 – Poder de compra: Os dois lados fazem uso dessa arma. Em algumas redes o volume de compra é tão grande, que elas chegam a administrar seus próprios centros de distribuição. Por outro lado, as pequenas aglomeram-se em associações e alcançam o mesmo poder de compra, em algumas vezes, até superior ao das redes.
3 – Mix de produtos: As redes avançam cada vez mais para o modelo drugstore no conceito one-stop shop. Em Belo Horizonte, graças a liminares, uma grande rede vende praticamente de tudo em lojas gigantes que contam até com drive thru. Por outro lado, é raro encontrar produtos cosméticos da Natura, por exemplo, em uma pequena farmácia independente.
4 – Captura de vendas: As grandes redes já acordaram para o fato de que o serviço farmacêutico gera vendas e fidelização. O atendimento personalizado, individual, e atencioso na pequena farmácia já não é mais um diferencial. No entanto, as grandes redes jamais conseguirão vender na “notinha”, ou “fiado” por confiança no cliente conhecido pelo estabelecimento.
5 – Marketing: Enquanto as grandes redes possuem poder financeiro para propaganda em TV, rádio, jornal e plataformas digitais, as pequenas estão apostando essencialmente nas mídias digitais como ferramenta de comunicação das suas promoções e relacionamento com os clientes.
6 – Gestão financeira: Pequenas farmácias independentes ainda desconhecem a importância da separação da vida financeira da empresa do bolso do proprietário. Princípios básicos da contabilidade são ignorados pelos pequenos que muitas vezes sofrem com a ausência de formação específica para a gestão de negócios. As grandes redes com os melhores executivos do mercado financeiro estão abrindo capital na bolsa e maximizando sua rentabilidade.
7 – Recursos Humanos: É cada vez mais desafiador para a grande rede contratar farmacêuticos. Criticadas amplamente pelos profissionais que passam por elas, os farmacêuticos preferem pequenas redes de associações, ou ainda farmácias independentes, por não terem abusos como: jornada de até 8 horas em pé – sem direito a assento, escalas exaustivas, pressão para vender vitaminas, acúmulo de função, dentre outras queixas.
Os resultados da batalha
Em seis capitais brasileiras já é possível ver, a olho nu, o estrago da guerra comercial causado pela estratégia massacrante das grandes redes. Ao abrir a operação de uma grande loja, em um ponto próximo a pequenas farmácias, estima-se que no mínimo três pequenos no entorno vão falência.
De acordo com o Censo Demográfico Farmacêutico do ICTQ, nos últimos três anos, o número de estabelecimentos farmacêuticos encolheu principalmente nas capitais, em função da substituição por grandes redes no lugar de várias farmácias independentes. O número de farmácias e drogarias no País cresceu 16,4%, no entanto especificamente nas capitais brasileiras o número de farmácias caiu 3,8%. Os estados com maior queda no número de estabelecimentos:
1. Espírito Santo - 20,6%
2. Rio Grande do Norte -17,6%
3. Santa Catarina -15,2%
4. Amazonas - 8,4%
5. Mato Grosso do Sul - 2%
6. Rio Grande do Sul - 0,6%
O drama das pequenas farmácias capixabas
“Medo de ir trabalhar e, quando voltar, meu prédio ter virado uma Drogasil.” O meme já viralizou entre os internautas capixabas não à toa. Nos últimos 12 meses, 201 novas farmácias surgiram em todo o Espírito Santo, sendo 118 somente no último semestre. Enquanto o Brasil se recupera de uma das crises econômicas mais severas de sua história, as grandes redes farmacêuticas vêm se expandindo como nunca no estado, sobretudo na Grande Vitória.
O que justifica essa expansão vertiginosa? Nem o próprio Conselho Regional de Farmácia (CRF-ES) sabe. Fato é que esse “boom” misterioso tem trazido consequências para os negócios locais e também tem gerado reclamações dos próprios farmacêuticos.
Em 2017, 60 farmácias de menor porte foram fechadas em todo o Espírito Santo, 27 delas somente na Grande Vitória. Enquanto isso, farmácias imensas, com grande espaço de estacionamento, localizadas em terrenos supervalorizados de bairros nobres – muitos deles já abrigaram negócios antigos e tradicionais – são erguidas em pouquíssimo tempo. A situação intriga o presidente do CRF-ES, Luiz Carlos Cavalcanti.
“Nos intriga bastante que em momento de grave crise tantas farmácias, principalmente de alto custo, sejam abertas. Os locais, de aluguel caríssimo, em bairros nobres, uma do lado da outra. Se existe um mesmo número de clientes, como é possível se sustentarem? Por outro lado, esse ‘boom’ tem sido de farmácias de rede de fora do estado, que além de medicamentos vendem vários outros produtos, cosméticos, perfumaria de custo mais elevado, que atendem um público diferenciado. Mas continua me intrigando, porque não existia demanda reprimida e não houve aumento populacional ou aquisitivo e mesmo assim a quantidade desse tipo de farmácia tem aumentado”, afirma o presidente. Segundo informações do próprio presidente, as três redes que têm tomado o mercado são as marcas Drogasil, Pague Menos e Pacheco.
Automedicação
Para o presidente do CRF-ES, mais lojas, mais riscos de intoxicação. A automedicação aumenta, segundo Luiz Carlos Cavalcanti. Ele diz ainda que a variação dos preços praticados pelas grandes redes não é tão grande que justifique uma expansão violenta.
“As menores, que eram de propriedade de farmacêuticos e empresários no estado, com atendimento mais personalizado, estão fechando. E, conforme crescem as redes mais impessoais, isso vai se perdendo. Temos de lembrar que medicamento não é um produto qualquer e requer atenção e acompanhamento do farmacêutico. É uma preocupação o crescimento da automedicação”, frisa o presidente.
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